RESUMO
A busca pessoal é uma das mais presentes formas de interação entre o Estado, por meio da atuação dos órgãos de segurança pública, e a sociedade. Por ser medida que recai sobre o corpo do indivíduo, afetando-o em sua privacidade, intimidade, honra e liberdade, a revista pessoal tem centralizado inúmeras discussões no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que reiteradamente tem apontado para a exigência de pressupostos legitimadores que não estejam restritos à subjetividade do executor da busca. Contudo, em face das inúmeras ações frustradas por se considerar a invalidade das buscas que resultaram no encontro de ilícitos e consequente deflagração do processo penal, a identificação dos requisitos de legitimação da busca apresenta-se como um problema afeto, também, à segurança pública, exigindo-se uma análise além do instituto além dos fins probatórios, compreendendo-o a partir de uma perspectiva mais ampla, vez que a segurança pública apresenta-se como um direito fundamental bidimensional, pois reveste-se de natureza individual e prestacional, exigindo do Poder Público a implementação de medidas que garantam ao cidadão um ambiente em que o exercício dos demais direitos fundamentais é viável. Diante disso, o presente trabalho objetiva analisar a busca pessoal e seus pressupostos a partir da doutrina, da jurisprudência e, por meio de pesquisas acerca da fundada suspeita, coletar informações que permitam compreender a fundada suspeita a partir da perspectiva do agente executor da busca pessoal e, a partir das informações obtidas, realizar uma abordagem da busca pessoal contextualizada com a promoção da segurança pública.
INTRODUÇÃO
A busca pessoal é uma das formas mais recorrentes de interação entre o Estado, através dos agentes de segurança pública que exercem o policiamento ostensivo preventivo, e os membros da coletividade. Não obstante sua ampla utilização, seja nas ações policiais de caráter prevento-repressivas ou enquanto instrumento de identificação e obtenção de fontes materiais de prova, essa medida tem centralizado inúmeras discussões acerca de sua legitimidade e pressupostos.
Independente do fim a que se preste, a busca ou revista pessoal é medida restritiva de direitos fundamentais, pois representa ingerência direta no corpo humano.
Por ser medida que relativiza direitos fundamentais, em especial à liberdade, intimidade e privacidade do indivíduo, a identificação de seus pressupostos e o estabelecimento de limites jurídicos objetivamente definidos reveste-se de considerável importância, máxime em face das inúmeras persecuções penais que restam frustradas pela conclusão acerca da ilegitimidade da diligência que deflagrou o feito, o que afeta diretamente a segurança pública, contribuindo para o agravamento da impunidade.
O Código de Processo Penal traz a previsão da busca pessoal independentemente de mandado judicial, desde que haja fundada suspeita de que a pessoa esteja em posse de arma proibida ou em posse de elementos que constituam corpo de delito, bem como quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar (art. 244 do CPP).
A problemática reside na imprecisão do termo fundada suspeita, que é a justa causa para a realização da busca pessoal. Na dicção de Aury Lopes Jr. (2021), ao mencionar a “fundada suspeita”, o legislador estabeleceu uma cláusula genérica, cujo conteúdo é vago, indeterminado e impreciso, abrindo margem para intervenções arbitrárias, fundadas em subjetivismo.
O Supremo Tribunal Federal, em 2001, afirmou que a fundada suspeita carece de elementos concretos, que apontem para a sua necessidade, não podendo fundar se em parâmetros unicamente subjetivos. Na ocasião, a Corte entendeu que o fato de trajar um “blusão” suscetível de ocultar uma arma, não é fundamento idôneo para a medida1.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, os precedentes vêm se consolidando no sentido de não reconhecer a legitimidade da busca pessoal realizada com outros fins que não sejam relacionados a atividade probatória. Nos últimos anos, a jurisprudência do aludido Tribunal Superior (nesse contexto, destaca-se a Sexta Turma) passou a exigir, em termos de standard probatório para a realização da busca pessoal e/ou veicular sem autorização judicial, elementos objetivos que possam ser precisamente descritos, e que indiquem que a medida foi precedida por verdadeiro juízo de probabilidade, sob pena de ilicitude da prova.
O tema foi enfrentado, no plano internacional, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no ano de 2020, quando do julgamento do caso de Fernández Prieto e Tumbeiro vs. Argentina. Na ocasião, a corte declarou que o Estado argentino era responsável pela violação dos direitos à liberdade pessoal, à igualdade perante a lei e da proibição da discriminação; dispondo que seu ordenamento jurídico interno, no tocante às normas que permitem a detenção, inspeção de veículos e revista pessoal sem ordem judicial; deveria ser adaptado, afanando-se “critérios frouxos e subjetivos”, inclinados à ampliação da discricionaridade e arbitrariedade das forças policiais. Não obstante, considerou que era necessário o desenvolvimento de práticas que conduzissem à plena efetividade dos direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos.
Recentemente, o tema voltou a ser discutido no STF, quando do julgamento do Habeas Corpus nº 208.240, impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo, em que fora pleiteada a nulidade do flagrante resultante de uma abordagem policial que, em tese, teria sido fundada em critérios generalistas de cunho racial.
O dissenso acerca dos elementos caracterizadores da fundada suspeita, que é pressuposto para a realização da busca pessoal, promove um quadro de insegurança jurídica que repercute diretamente na esfera dos direitos fundamentais, tanto no plano individual, no tocante à necessidade de critérios objetivos que afastem ingerências estatais arbitrárias e subjetivas; quanto na esfera coletiva, por afetar a persecução
criminal, que também é instrumento de promoção de justiça social, e a garantia da segurança pública.
Entretanto, estabelecer critérios objetivos e genéricos que permitam constatar que a busca pessoal fora lastreada em fundada suspeita não é tarefa simplória, que pode ser solucionada com a simples subsunção do contexto fático a uma regra abstrata. O tema exige uma análise cautelosa, pois se trata de um ponto de tensão entre o direito fundamental à segurança pública, dever constitucionalmente imposto ao Estado, cuja proteção não se exaure nas atribuições dos órgãos elencados no art. 144 da Lei Maior, abarcando o exercício da jurisdição penal, que está intimamente ligada à segurança pública; e a inviolabilidade pessoal da pessoa humana.
Diante disso, considerando o caráter restritivo do instituto da busca pessoal, cuja natureza requer que sua execução se revista de excepcionalidade, bem como que esteja submetida a pressupostos que protejam a sociedade de atuações arbitrárias e subjetivas, sem olvidar de sua íntima relação com a promoção da segurança pública; o presente trabalho objetivou (1) estabelecer, a partir do ponto de vista doutrinário, estabelecer uma noção conceitual que pudesse servir de ponto de partida teórico para este estudo; (2) por meio de pesquisa jurisprudencial, em especial nas ações que tramitaram no âmbito do Superior Tribunal de Justiça nos últimos 5 anos, cuja busca pessoal fora objeto de discussão, identificar quais os pressupostos legitimadores exigidos pela Corte Superior, bem como se é possível, a partir dessa identificação, apontar para um conjunto de requisitos exigidos pela jurisprudência que possam ser considerados pelos agentes quando da execução da medida; e (3) coletar dados, através de outras pesquisas desenvolvidas acerca do tema, que permitam identificar os fatores que influenciam a seleção das pessoas submetidas à busca pessoal, e se é possível identificar um conjunto de fatores de influência em comum que fundamente a suspeita.
2. CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E ESPÉCIES DE BUSCA PESSOAL
Renato Brasileiro (2021) menciona duas espécies de busca pessoal, quais sejam a busca pessoal por razões de segurança, cuja natureza é contratual, e a busca pessoal de natureza processual penal, consistente em medida instrumental de natureza probatória, cuja previsão legal encontra-se no §2º, do art. 240, do CPP.
Não obstante está inserida entre os meios de prova, a busca ou revista pessoal é meio de obtenção de prova, por meio do qual o agente, geralmente no âmbito extraprocessual, procura fontes materiais de prova que estejam em posse de uma pessoa sobre a qual paire fundada suspeita (LIMA, 2021). Para que se configure a busca processual, é necessário que os objetos que se pretende encontrar estejam juntos ao corpo, seja em situação de porte ou conectados por contato direto (PITOMBO, 2005). No mesmo sentido, Nucci (2015) afirma que a busca pessoal envolve desde as vestes, ou objetos móveis portados, até o próprio corpo.
Quanto à finalidade da busca pessoal, pode-se verificar, atualmente, que a busca pode ser investigativa, quando voltada para o encontro de elementos probatórios relativos a infrações penais já ocorridas; preventiva, realizadas no contexto de preservação da ordem pública; e exploratória, quando há autorização judicial para que a autoridade policial acesse locais em que a privacidade é garantida, para viabilizar uma investigação criminal (AVENA, 2023).
Independentemente da modalidade da busca, trata-se de medida restritiva de direitos fundamentais, haja vista que há relativização do direito à privacidade, à intimidade e até à liberdade. Dada a sua natureza restritiva, em regra, está submetida à cláusula de reserva de jurisdição. Entretanto, a lei admite sua realização independentemente de mandado, em especial quando houver fundada suspeita de que a pessoa oculte consigo arma proibida ou elemento que constitua corpo de delito de infração penal (art. 244 do CPP).
A busca pessoal enquanto instrumento preventivo voltado para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, embora seja realizada, geralmente, por órgãos administrativos (por exemplo, a abordagem policial realizada por policial militar, cuja natureza da atividade é, essencialmente,
administrativa), sem que haja um procedimento investigativo formalmente instaurado, não pode ocorrer sem que haja um lastro jurídico legitimador, sem a observância da proporcionalidade, da legalidade, da dignidade da pessoa humana, entre outras normas jurídicas que amparam e limitam a atuação restritiva do Estado sobre o indivíduo. Sobre o tema, Nucci (2015) aponta que em algumas situações urgentes, mas comumente nos casos de tráfico de drogas, a diligência pode ser necessária. Nesses casos, em que o autor considera que seria impossível a obtenção de autorização judicial em tempo hábil, não obstante admitir a possibilidade jurídica de imposição da medida sem mandado, alerta que o agente deve envolver-se com a máxima cautela, para que não se realize atos invasivos e impróprios, humilhantes e vexatórios, mediante escolha aleatória e desproporcional.
Por ser, o exercício das ações de preservação da orem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio, atividade de natureza administrativa que encontra seu fundamento no poder-dever de polícia, que por sua vez, conforme a doutrina administrativista tradicional, baseia-se na supremacia do interesse público sobre o privado e na indisponibilidade do interesse público (PIETRO, 2022).
Ocorre que, ainda que iniciada no âmbito administrativo, a busca pode resultar na constatação de que o agente está diante da ocorrência de uma infração penal e, a partir de então, o fato passa ao objeto de interesse do direito processual penal. Nesse ponto, é necessário, ainda que sumariamente, estabelecer a distinção entre busca e apreensão. A busca é meio de obtenção de prova, ou seja, é diligência que visa ao encontro de fontes materiais de prova, ao passo que a apreensão é medida de constrição, que visa custodiar a fonte de prova, podendo ou não ocorrer após a busca (LIMA, 2021). No momento em que o agente, por meio da revista pessoal, encontra objeto que constitua corpo de delito, independente das razões que motivaram a realização da diligência, haverá a apreensão. Uma vez apreendido o objeto e apresentado à autoridade policial, em que pese ter sido encontrada em meio ao exercício da função administrativa no âmbito preventivo, passará a revestir-se da qualidade de fonte de prova, e como tal, será submetido ao regramento jurídico próprio.
À guisa de exemplo, suponha-se que um agente de segurança pública, motivado por fundada suspeita de que uma pessoa esteja portando ilegalmente uma arma de fogo em via pública, amparado pelo poder-dever de polícia, proceda a revista pessoal e, através da diligência, encontre o objeto do crime. A custódia da arma de fogo é a medida de constrição por meio da qual a arma que estava sendo portada em situação de irregularidade sairá da posse do quem a detinha e ficará sob a custódia do Estado, por ser corpo de delito da infração penal constatada e que, portanto, servirá de prova em futuro processo penal. No âmbito da persecução criminal, sob a égide do princípio do devido processo legal, sem o qual ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens, bem como onde não serão admitidas provas obtidas por meios ilícitos, será analisado se os direitos e garantias constitucionais do flagranteado foram observados. Nesse contexto, a busca preventiva de natureza administrativa que resultou na apreensão da arma de fogo, será considerada meio de obtenção de prova, cuja previsão legal encontra-se no art. 240, §2º c/c o art. 244, todos do diploma processual penal.
Em ambos os dispositivos mencionados, a expressão legal que revestirá a medida de legitimidade, a justa causa que validará a ação, é a fundada suspeita de que a pessoa que foi submetida a revista pessoal estava em posse de arma proibida ou outro elemento que constituísse corpo de delito. É nesse sentido que Nucci (2015) afirma que a fundada suspeita é requisito imprescindível para a realização da revista pessoal, exigência essa que não se satisfaz com a mera desconfiança ou suposição. O autor prossegue observando que o agente policial não pode motivar-se exclusivamente em sua experiência ou em pressentimento.
Ainda sobre a fundada suspeita enquanto pressuposto de legitimidade da busca pessoal, mais ferrenha é a crítica tecida por Aury Lopes Jr. (2022, p.676):
3. JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACERCA DA BUSCA PESSOAL
Em 2001, o Supremo entendeu que a fundada suspeita constante no art. 244 do CPP exige elementos concretos que apontem para a necessidade da medida, não podendo fundar-se tão somente em parâmetros subjetivos. Na ocasião, a Corte entendeu que o fato de uma pessoa trajar um “blusão” em que se pode ocultar uma arma, não seria motivo idôneo a justificar a medida, sob pena de se estar referendando condutas arbitrárias que ofendem os direitos e garantias fundamentais2.
Por ser medida invasiva e constrangedora, a imprescindível que o agente esteja amparado por fundamentos que revistam a medida de legitimidade. Ao exigir a constatação de elementos concretos que indiquem que a intervenção não fora baseada apenas em parâmetros meramente subjetivos, surge a necessidade de identificar em que hipóteses restariam configurados tais elementos legitimadores.
Em 2019, a 6ª Turma do STJ considerou válida a busca pessoal realizada por policiais militares que, após receberem informações de pessoas que estavam em uma festividade acerca de indivíduos que prometeram retornar ao local armados, realizaram rondas e localizaram um veículo com quatro ou cinco ocupantes, procedendo, então, a abordagem policial, do que resultou na apreensão de uma arma de fogo que estava localizada no interior do automóvel. Conforme o relato do condutor da ocorrência constante no processo, consideraram que o veículo estava em atitude suspeita por estar parado em via pública, com quatro indivíduos em seu interior, já sendo 1h da manhã. Nas palavras do Relator, Min. Rogerio Schietti, a existência ou não de informação anterior acerca da ocorrência de uma briga em um baile, bem como acerca da promessa de retorno armado, pouco importava, pois, a abordagem policial restaria justificada “pelo número de ocupantes do veículo – eram 04 homens – como também pelo horário – era 01h da manhã, circunstâncias essas comuns nos relatos dos policiais”3.
Em fevereiro de 2021, a 6ª Turma, por unanimidade, concedeu Habeas Corpus, reconhecendo a nulidade das provas obtidas a partir de busca pessoal baseada em denúncia anônima. Na ocasião, considerou-se que “o fato de o acusado se amoldar ao perfil descrito em denúncia anônima e ter empreendido fuga ante a tentativa de abordagem dos policiais militares”4, não era assaz para, isoladamente, justificar a invasão de sua privacidade, haja vista a exigência de que a suspeita estivesse fundada em elementos concretos, idôneos a indicarem, objetivamente, a ocorrência de um crime no momento da abordagem. Saliente-se que a ocorrência, conforme depoimento dos policiais responsáveis pela revista ao acusado, fora desencadeada a partir da denúncia anônima de que um homem de idade mais avançada estaria traficando drogas em uma determinada localidade e, dirigindo-se ao local, os policiais encontraram o suspeito que correspondia ao perfil informado, e que, ante a tentativa de abordagem, tentou empreender fuga, contudo, sem êxito, sendo encontrado com ele porções de crack e numerário.
No mesmo sentido, em 2021, a 5ª Turma do STJ considerou ilícitas as provas obtidas por meio de busca pessoal realizada com base em denúncia anônima de que em determinado endereço ocorria a prática de tráfico de drogas e, chegando ao local, que já era conhecido pelos policiais como ponto de venda de drogas, o policiamento foi identificado por dois indivíduos que empreenderam fuga, todavia os policiais conseguiram abordá-los e proceder a revista, encontrando porções de cocaína, crack e, no local informado, uma balança de precisão Todavia, o Tribunal entendeu que, “na espécie, as provas foram obtidas por meio ilícito e não se revelam seguras para legitimar a ação dos policiais frente ao direito à intimidade e à inviolabilidade da vida privada” 5.
Noutra ocasião, a 6ª Turma, mais uma vez, considerou ilegal a busca pessoal com base em denúncia anônima desacompanhada de outros elementos indicativos da ocorrência de crime, bem como ante a ausência de referência a investigação preliminar ou outras situações aptas a justificarem a medida, tais como campanas no local, monitoramento do suspeito ou, pelo menos, menção a movimentação de pessoas que pudessem indicar a traficância. Frise-se que, no caso, o Tribunal equiparou a busca pessoal à busca domiciliar, conforme extrato da emenda a seguir:
[…] segundo a pacífica orientação desta Corte, a denúncia anônima,
desacompanhada de outros elementos indicativos da ocorrência de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio indicado, inexistindo, nessas situações, justa causa para a medida (REsp n.
1.871.856/SE, Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe de30/6/2020).
No mesmo sentido: HC n. 505.705/RJ, Ministro Ribeiro Dantas, Quinta
Turma, DJe 19/12/2019); AgRg no REsp n. 1.812.220/RS, Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe 25/10/2019; HC n. 499.163/SP, Ministro
Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 17/06/2020. Mutatis
mutandis, o mesmo entendimento aplica-se às hipóteses de busca pessoal, uma vez que o art. 240, § 2º, também exige a ocorrência de
fundada suspeita para que o procedimento persecutório esteja autorizado e, portanto, válido6.
Em maio de 2021, chegou ao STJ um caso em que guardas civis municipais estavam em patrulhamento ostensivo em determinada localidade, quando se depararam com três pessoas em um veículo que, ao perceberem a viatura, um dos ocupantes desceu em aparente estado de nervosismo e entrou apressadamente em uma residência. Diante disso, os agentes realizaram a busca pessoal seguida da busca veicular, onde foram encontrados três tabletes de maconha. No caso em apreço, o Tribunal de origem reconheceu a legitimidade da atuação dos guardas municipais envolvidos com a ocorrência. A Corte Superior, por outro lado, não obstante reconhecer a possibilidade jurídica da prisão em flagrante realizada por guardas municipais, entendeu que carece de razoabilidade considerar que, “por si só, o fato de um dos ocupantes ter saído do veículo ao avistar a viatura, aparentando nervosismo, enquadre-se na excepcionalidade da revista pessoal e veicular ocorrida posterirormente”7, declarando, por fim, a ilegalidade da apreensão e determinando o trancamento do processo.
Ainda no tocante à prisão em flagrante realizada por guardas municipais, a 6ª Turma, em sede de Habeas Corpus, determinou o trancamento de ação penal e a soltura de um indivíduo que fora flagrado em posse de uma munição calibre .40, porções de cocaína, maconha e ecstasy, sacos do tipo zip lock (comumente utilizado para embalar porções de droga para a comercialização), uma balança de precisão e uma quantia de mais de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Na ocasião, por volta das 4h, o efetivo da guarda municipal recebera informações acerca de realização de uma festa clandestina, bem como que havia um indivíduo, numa caminhonete branca comercializando entorpecentes. Dirigindo-se ao local, encontraram o porteiro, que afirmou ter sido contratado pelo organizador, que veio ao encontro da guarnição em uma caminhonete branca. Da continuidade das diligências, resultou a apreensão de mais munições do calibre .22 e .40, bem como de uma pistola da marca Taurus, calibre .40. Na decisão, considerou-se que:
[…] apesar de constar dos autos a realização de festa clandestina, não
houve a indicação de ter sido instaurado procedimento investigatório prévio ou de que, no momento da abordagem, houvesse dados
concretos sobre a existência de justa causa apta a autorizar a medida invasiva8.
Em abril de 2022, a 6ª Turma do STJ julgou procedente o RHC 158.580/BA, do que resultou o trancamento do processo penal. Na ocasião, o Relator (Min. Rogerio Schietti Cruz) afirmou que a questão central em volta da qual o seu voto se debruçaria era identificar qual a exigência, em termos de standard probatório, para a busca pessoal, com o fito de definir se a alegação genérica de “atitude suspeita” era assaz para a imposição da medida. Em seu voto, o Relator entendeu que a normativa que regula a busca pessoal exige mais do que a fundada suspeita, pois requer que essa suspeita seja esteja direcionada à posse de arma proibida ou outro elemento que constitua corpo de delito, restringindo-se à finalidade probatória, não se admitindo, portanto, buscas com finalidade preventiva e exploratória.
Na decisão, apontou-se para três razões pelas quais se deve exigir elementos concretos, além da intuição baseada no tirocínio, quais sejam “evitar o uso excessivo do expediente, garantir a sindicabilidade da abordagem e evitar a repetição de práticas que reproduzem preconceitos. Algumas outras argumentações foram postas, tais como critérios raciais de seleção do sujeito abordado, não superação da prisão para averiguação a pretexto de manutenção da ordem pública, a utilização da expressão “atitude suspeita” como forma de humanizar abordados que, em regra, continuavam submetidos ao critério de seletividade baseado no preconceito, ineficiência da medida, cuja demonstração se deu mediante uma análise comparada do percentual de abordagens que resultavam frutíferas do Brasil e dos Estados Unidos, entre outros argumentos que continuaram a não definir quais parâmetros deveriam ser considerados quando da abordagem policial para a realização da busca pessoal. A decisão reiterou que as informações de fontes não identificadas ou intuições e impressões meramente subjetivas, não demonstráveis de modo claro e concreto, não preenchem o standard probatório exigido pela norma.
Em 2021, a 5ª Turma considerou válida a busca pessoal em suspeito que demonstrou nervosismo perante os policiais, que realizaram a busca e constataram que o revistado estava em posse de maconha9. Todavia, em 2022, a 6ª Turma considerou que “a percepção de nervosismo do averiguado por parte de agentes públicos é dotada de excesso de subjetivismo e, por isso, não é suficiente para caracterizar a fundada suspeita para fins de busca pessoal”10.
Conforme demonstrado, em várias decisões, o STJ entendeu, em contextos diversos, que a denúncia anônima era insuficiente enquanto em termos de standard probatório para a revista pessoal. Porém, em 2021, o Tribunal reconheceu que a busca pessoal baseada em denúncia anônima era válida11. Ainda relativo à denúncia anônima, não se reconheceu a validade da busca realizada mediante informações pormenorizadas, que apontavam com detalhamento o local onde as drogas estariam armazenadas, a alcunha do indivíduo que praticava a traficância, inclusive com o emprego de cães farejadores durante à ação, todavia as provas foram declaradas nulas12.
Em decisão já mencionada, considerou-se inválida a busca realizada com base em denúncia anônima, desacompanhada de diligências prévias, tais como campanha, acompanhamento de movimentação, entre outros (HC: 638591/SP). Contudo, noutra ocorrência, policiais civis receberam informações acerca de um crime em andamento, com indicação de endereço e dados sobre o veículo utilizado, diante disso, foram ao local e realizaram campana, localizaram o veículo e, após as buscas, encontraram duas armas de fogo, porém a busca foi considerada inválida e foi determinado o trancamento do processo13.
Percebe-se, portanto, que não há consenso no tocante à definição das situações em que se considere que houve fundada suspeita, bem como um entendimento preciso acerca do instituto da busca pessoal no âmbito do STJ, uma vez que, ora admite-se que, para a realização da busca pessoal, menor rigor se impõe se comparado à busca domiciliar, em face da proteção constitucional expressa que paira sobre a inviolabilidade do domicílio; ora se emprega o mesmo raciocínio, exigindo-se até procedimento investigativo prévio que legitime a imposição da medida.
Ocorre que essa insegurança jurídica é danosa à sociedade, por afetar diretamente a atividade de segurança pública, que por sua vez é direito fundamental que permite aos cidadãos o exercício de inúmeros outros direitos fundamentais. Conforme demonstrado, as decisões em que as buscas pessoais foram consideradas inválidas, em sua maioria, relacionavam-se à crimes graves, tais como tráfico de drogas, crimes envolvendo armas de fogo ilegais, são infrações penais que violam a paz social, a saúde pública, a segurança das pessoas, entre outros bens jurídicos caros ao convívio social.
Diante disso, impõe-se, primeiramente, compreender se a busca pessoal encontra os mesmos limites constitucionais impostos à busca domiciliar. Em seguida, verificar se há, no ordenamento jurídico pátrio, amparo constitucional e legal para a busca pessoal além do âmbito processual penal.
4. BUSCA PESSOAL E BUSCA DOMICILIAR
A busca domiciliar consiste na diligência que se realiza dentro da moradia, seja ela permanente ou temporária, de alguém, com o fim de encontrar objetos que constituam prova de fato criminoso ou até pessoas. Essa modalidade de busca encontra barreira expressa na Constituição, que declara a inviolabilidade do domicílio, apontando um rol taxativo de hipóteses em que se excepciona tal direito fundamental, a saber: em caso de consentimento do morador, diante de situação de flagrante delito, desastre ou, mediante ordem judicial, noutras situações previstas em lei, para fins de investigação criminal ou instrução processual (PITOMBO, 2005). Não obstante a possibilidade de ingresso desautorizado em domicílio sem ordem judicial nas estritas e excepcionais exceções previstas na constituição, não se pode afirmar que não há controle judicial nesses casos, vez que a medida será submetida à apreciação do Poder Judiciário em momento posterior.
Em caso de flagrante delito, impera a taxatividade processual em prevê as hipóteses em que há de se considerar o estado de flagrante delito. A exceção constitucional justifica-se em face do poder-dever do Estado de preservar a paz pública (PITOMBO, 2005). Nesse diapasão, em 2015, o STF, em sessão plenária, reafirmou o entendimento de que, em face da ocorrência de crime permanente, há de se reconhecer a viabilidade do ingresso forçado por forças policiais14. Em 2022, no mesmo sentido, a 1ª Turma do STF15. Acerca dos fins da busca domiciliar, na mesma decisão proferida em 2015, o plenário do Supremo reconheceu que a medida, não obstante seu caráter invasivo, era de grande valia para a repressão à prática de crimes e para a investigação criminal.
Não obstante a situação de flagrante delito caracterizar hipótese excepcional em que se autoriza o ingresso desautorizado em domicílio alheio sem ordem judicial, a doutrina e a jurisprudência têm dispensado considerável cautela no tocante à validade das buscas nesse contexto, exigindo-se urgência e necessidade da diligência, ausência de dúvidas quanto ao estado de flagrância e sua atualidade (PITOMBO, 2005).
A legislação infraconstitucional, em face da garantia constitucional da inviolabilidade, apresenta vários dispositivos, em diplomas diversos, que protegem o domicílio, tais como a definição de casa e a criminalização de sua violação (art. 150 do CP), a criminalização da violação por parte do agente estatal (art. 22 da Lei 13.869/19), requisitos a serem observados pelo juiz quando da expedição do mandado, limitações quanto ao horário de cumprimento, entre outras normas que reforçam a garantia constitucional já mencionada.
Salienta-se, ainda, que a lei processual penal exige, para a realização da busca domiciliar, que haja fundadas razões que a autorizem, delimitando, ainda, os fins a que a legitimidade da medida estará adstrita. A expressão “fundadas razões” difere da fundada suspeita exigida para a busca pessoal, haja vista que, aqui, é imprescindível que existam elementos concretos, fortes indícios, verdadeiros elementos de convicção de que na casa que se pretende realizar a busca, esteja o objeto pretendido (PITOMBO, 2005).
Em se tratando da busca pessoal, a lei exige que seja motivada por fundada suspeita, que é diferente da exigência de “fundadas razões”. Nucci (2015) afirma que a suspeita é mera intuição, desconfiança, motivo pelo qual a lei exige que a suspeita seja fundada, ou seja, exige algo mais concreto e seguro.
A busca pessoal é, igualmente, medida invasiva, que flexibiliza a inviolabilidade pessoal do sujeito que é submetido à revista, afetando-o em sua intimidade, em sua privacidade. Contudo, deve-se questionar se esses bens jurídicos, que são mui caros ao cidadão, goza da mesma proteção dispensada ao domicílio.
Sobre essa questão, em 2017, a 6ª Turma do STJ considerou inválida a busca realizada na casa de um indivíduo que estava em local conhecido pelos policiais como ponto de venda de drogas e, após visualizar a guarnição, refugiou-se em sua residência. Todavia, na ocasião, a Corte entendeu que:
A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo recorrido, embora pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o consentimento do morador – que
deve ser mínima e seguramente comprovado – e sem determinação judicial
Diante disso, pode-se observar que a inviolabilidade domiciliar conta com um denso aparato normativo, tanto no âmbito constitucional como no ordenamento infraconstitucional. Ao passo que o legislador não dispensou a mesma atenção ao regular a medida restritiva consistente na busca pessoal, exigindo-se, para tanto, a fundada suspeita de que o indivíduo esteja em posse de objeto que constitua corpo de delito ou prova de uma infração penal.
A doutrina aponta para modalidades distintas de busca pessoal, conforme sejam os fins almejados, podendo ser investigativa, preventiva ou exploratória. A jurisprudência, por sua vez, tende a restringir sua legitimidade aos fins probatórios e, mesmo nesse contexto, exige que a medida não seja motivada por fatores exclusivamente subjetivos, requerendo, para que se considere válida, elementos objetivos e concretos capazes de demonstrar que existia uma situação de fato anterior, bem como que os agentes executores da medida a conheciam.
Para melhor compreensão do instituto da busca pessoal, além da perspectiva doutrinária e jurisprudencial, por meio da análise de outras pesquisas acerca do tema, bem como através de consulta direta a sessenta policiais do Estado de Pernambuco que atuam diretamente nas ações de policiamento ostensivo preventivo, buscou-se identificar quais fatores são considerados pelos agentes de segurança pública para a realização da abordagem policial com vistas à busca pessoal; e se é possível apontar para um conjunto de elementos comuns caracterizadores da fundada suspeita, a partir do ponto de viste desses agentes.
5. A FUNDADA SUSPEITA A PARTIR DO PONTO DE VISTA DO AGENTE POLICIAL
Com vistas a analisar a fundada suspeita, pressuposto para a busca pessoal, sob a perspectiva do agente que atua diretamente nas ações policiais que resultam nos processos analisados anteriormente, foram consultados sessenta policiais envolvidos diretamente com a atividade fim, atuantes na região metropolitana do Recife, por meio da aplicação de um formulário, com três perguntas, por meio das quais os consultados apresentaram uma definição de “fundada suspeita”, e apontaram para os principais fatores de influência que os motivavam a realizar a abordagem para a execução da busca pessoal.
A maioria dos policiais consultados consideraram que a localidade era o principal fator que influenciava na percepção de suspeita. A consideração do local, de acordo com as respostas, geralmente era apontada conjuntamente com outros fatores, tais como manifestações comportamentais consideradas anormais (comportamento que faz com que uma determinada pessoa se diferencie das demais em um mesmo ambiente coletivo público), os índices de criminalidade – o que se justifica por uma tendência de disposição do policiamento conforme a mancha criminal – ou pelo fato de ser, determinado lugar, conhecido como ponto de venda de drogas.
O comportamento suspeito, também associado a outros fatores de suspeição, tais como vestimentas, o lugar, entre outros; foi apontado pela maior parte dos consultados. A mudança de direção, atitude furtiva ( tentar se misturar em uma multidão) e o ato de correr ao avistar o policiamento, por vezes foram apontadas depois das expressões “comportamento suspeito”, “comportamento incomum”, “atitude suspeita” ou “nervosismo”, de modo explicativo.
Quando perguntados acerca da definição de fundada suspeita, grande parte dos agentes consultados respondiam com base nos elementos que os levavam a suspeitarem de uma pessoa, repetindo-se expressões como “nervosismo”, “tentar correr”, “mudar de comportamento”, entre outras. Contudo, percebeu-se que, ao tentar formular um conceito, apresentavam elementos revestidos de maior subjetividade, tais como desconfiança, tirocínio, discricionariedade. Em uma das respostas, ao tentar definir a “fundada suspeita”, um dos consultados afirmou que “a fundada suspeita toma por base vários aspectos (local, indivíduo, comportamento), que subsidiam, juntamente com o tirocínio policial, a decisão da realização da busca pessoal”. A fundada suspeita foi apontada, ainda, como sendo um “comportamento estranho ao perceber a presença policial, apressando a caminhada, ficando nervoso, aparentemente; ficar olhando várias vezes pra trás de maneira brusca”. No mesmo sentido, identificou-a com “uma desconfiança e/ou suposição motivada por alguma expressão corporal, nervosismo demonstrado quando o suspeito vê a viatura”, advertindo: “lembrando que, tudo isso tem que ser analisado com extrema cautela”.
Quando convidados a estimar com que frequência a busca pessoal por eles realizadas poderiam ser justificadas por elementos concretos e objetivos capazes de justificar a realização da medida, 50% dos policiais consultados respondeu que “na maioria das vezes”; 24,1% afirmou que “sempre” a realizava com base em elementos concretos; 15,5% respondeu que, com frequência “regular”, procedia a busca com base em fatores objetivos e concretos; e 10,3% dos consultados reconheceu que “raramente “realizava a busca com base em fatores situacionais objetivos e concretos. Frise-se que, com base nas respostas, os elementos objetivos e concretos eram, em sua maior parte, relacionados com o lugar e manifestações comportamentais (tais como nervosismo aparente, atitude furtiva, vestes, mudança de direção ou algum fator intuitivo justificado pela vivência policial).
Uma pesquisa apresentada em 2014, desenvolvida com o objetivo de discutir a fundada suspeita com ênfase no elemento situacional que influencia a tomada de decisão do policial quando da abordagem, apontou para três fatores situacionais que explicam a fundada suspeita, quais sejam a atitude suspeita, as taxas criminais e as características do ambiente (PINC, 2014). Defendeu-se, ainda, no âmbito dessa pesquisa, que esse fator situacional está diretamente vinculado a aspectos comportamentais verificados quando do encontro da pessoa abordada com o policial, sustentando, ainda, que o ambiente e os índices criminais agregam significado à construção da fundada suspeita.
Saliente-se que, quando da análise dos dados, foi possível apontar uma série de situações em que, independentemente do ambiente e dos índices de criminalidades locais, a atitude suspeita é fator situacional suficiente para a configuração da fundada suspeita. Dentre essas situações ensejadoras da abordagem, estavam listadas a pessoa que apresenta um volume na cintura, o fato de estarem dois homens em uma moto ou quatro homens em um veículo, a incompatibilidade da vestimenta com o local ou o clima, atitude furtiva ao perceber o policiamento, pessoa que arremessa algo quando se depara com o policial e a demonstração de nervosismo caracterizada pelo comportamento de desviar o olhar (PINC, 2014).
Em 2008, uma pesquisa voltada a identificação de um padrão racial de seleção da pessoa a ser abordada foi realizada no Estado de Pernambuco, em que se defendeu a existência de um filtro racial na seleção do indivíduo suspeito. Saliente-se que essa pesquisa foi citada, inclusive, pelo Ministro Rogerio Schietti Cruz, quando de seu voto no RHC nº 158.580/BA, como subsídio para a alegação de que “os policiais tendem a priorizar a abordagem, em primeiro lugar, de pretos; depois, passam para os pardos e, só por último, para os brancos”.
Em contraposição, na pesquisa realizada pela Dr.ª Tânia Pinc (2014) apontou para uma maior tendência de recair, a suspeita de envolvimento com o crime, sobre pobres, quando comparado com pessoas ricas e negras. Ocorre que o policiamento preventivo ostensivo, que é realizado, em regra, pelas polícias militares, lida com infrações penais (ou eventos considerados infrações em potenciais, ensejando uma atuação preventiva) que, geralmente, são cometidas pela classe econômica mais desfavorecida da sociedade, tais como roubo, furto, ações em eventos públicos envolvendo a aglomeração de grande número de pessoas, perturbação do sossego, entre outras.
No âmbito internacional, o problema acerca dos pressupostos para a realização da revista pessoal foi enfrentado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando da apreciação do caso de Fernández Prieto e Tumbeiro vs. Argentina, em 2020.
6. CASO DE FERNÁNDEZ PRIETO E TUMBEIRO VS. ARGENTINA
Em novembro de 2018, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos levou à Corte Interamericana de Direitos Humanos dois casos que envolviam detenções arbitrárias e ilegais, que resultaram na condenação de Carlos Alberto Fernández Prieto e Carlos e Alejandro Tumbeiro. Na ocasião, alegou-se que as prisões impostas a Fernández Prieto e Alejandro Tumbeiro foram fruto de detenções desprovidas de ordem judicial ou situação de flagrante delito, bem como que não houve, nos autos, demonstração de elementos concretos e objetivos aptos a justificarem a revista pessoal e veicular realizada pelos policiais responsáveis pelas prisões. Apontou, ainda, que o fato de estarem vestidos com roupas incompatíveis com o local em que foram encontrados e o estado de nervosismo dos abordados, poderiam revelar conteúdo discriminatório quando da formação da suspeita.
O Estado Argentino manifestou, em face do caso, o reconhecimento quanto à sua responsabilidade, aceitando as conclusões expressas no relatório da comissão. Para a comissão, o fato de as detenções realizadas pelos policiais, que resultaram nas condenações mencionadas, terem sido ratificadas pelos órgãos do Poder Judiciário, demonstrou que, além de consolidar a omissão estatal no tocante à exigência de razões objetivas que lastreiem a detenção de pessoas com base na suspeita, validaram como legítimas as razões influenciadoras da medida apresentada pelos policiais, quais sejam a demonstração de nervosismo e a inconsistência das vestimentas com a área em que foram encontrados.
Quando do relatório, a comissão entendeu que houve violação do disposto nos arts. 7.1, 7.2, 7.3, 7.5, 8.1, 8.2.h, 11.1, 11.3 e 25, todos da Convenção Americana de Direitos Humanos, combinados com as obrigações contidas nos arts. 1.1 e 2 do mesmo diploma.
No bojo do processo em comento, destaca-se, no tocante ao objeto do presente estudo, o contexto em que se deu a prisão de Fernández Prieto. Na ocasião, conforme consta na decisão, três agentes policiais estavam patrulhando em uma área erma (“uma área quase inabitada da cidade de Mar de Plata”), quando se depararam, durante a noite, com três pessoas no interior de um carro, em atitude suspeita. Os policiais interceptaram o veículo e “fizeram com que os passageiros descessem” e, na presenta de duas testemunhas convocadas para a realização da busca, realizaram na, do que fora constatado que no porta-malas do veículo estava um “tijolo” de maconha e um revólver calibre 32mm, e 30 munições. Dentro do automóvel, no banco em que estava assentado Fernandéz Prieto, fora encontrado mais uma pistola calibre 22mm, 8 munições, 1 carregador de pistola, dois coldres e mais 5 tijolos de maconha.
Na declaração prestada por um dos policiais envolvidos com a ocorrência, constava que, quando foram realizar a busca veicular, Fernandéz havia reconhecido que a droga estava sendo conduzida a um destinatário certo, por ele apontado. Quando de sua manifestação, Fernandéz declarou que fora contratado para o transporte da droga, mais ou menos, um mês antes da prisão, e que assinara o auto de flagrante de boa-fé.
Em sede de defesa, fora alegado que a medida teria sido arbitrária, sustentando que não havia indícios veementes que autorizassem a interceptação do veículo, a apreensão e a revista, concluindo que a atitude suspeita não, de modo algum, estaria apta a fundamentar a imposição da medida.
Levado à consideração da Câmara de Apelação, a Corte entendeu que a busca fora fundada em estado de suspeita prévia, e realizada em circunstâncias em que não era possível requerer a ordem judicial prévia. Acrescentou, ainda, que o fato em análise se referia a atuação prudente da polícia, que atuara no exercício de suas funções específicas, e sem querer qualquer violação de normas constitucionais ou processuais.
Não satisfeita, a defesa recorreu extraordinariamente à Câmara Federal, entretanto a Corte não admitiu o recurso manejado por não vislumbrar a existência de questão de gravidade institucional, tampouco entendeu que a decisão objeto da impugnação era desprovida de fundamentação com lastro no ordenamento vigente ou que tenha violado garantias fundamentais. Entretanto, da decisão de inadmissão do recurso extraordinário federal, fora interposto agravo, sob a alegação de que a matéria possuía o requisito de gravidade institucional, pois afetada princípios fundamentais de ordem social, apontando para outros inúmeros casos similares ao de Fernandéz. Nas razões de defesa, foi posto que o Estado era omisso por não estabelecer limites claros à atuação das forças policiais, o que afetava tanto a liberdade quanto a segurança da sociedade. Contudo, mais uma vez a resposta do Poder Judiciário foi a favor da legitimidade da prisão realizada pelos policiais, que atuavam preventivamente e presumiram, em face da atitude suspeita, a ocorrência de um crime, que foi confirmado pela descoberta do material ilícito.
Diferente se mostra o caso de Carlos Tumbeiro, em que os policiais, por considerarem que suas vestes eram incomuns para o local em que se encontrava, bem como por demonstrar nervosismo, o abordaram, procederam a busca pessoal “por cima de suas roupas” e, nada tendo encontrado nesse primeiro momento, convidaram-lhe a entrar na viatura, para que a sua identidade, cujo documento já havia sido apresentado pelo Sr. Tumbeiro aos agentes federais argentinos, fosse verificada. No interior da viatura, os policiais mandaram o suspeito abaixar suas calças e sua roupa íntima. Após o procedimento, constataram que o revistado estava em posse de jornais, que encobriam certa quantidade de cocaína.
No relatório, a Comissão que, caso fosse considerado que a atuação dos policiais estava amparada pelo ordenamento jurídico, tais normas eram contrárias à Convenção Americana, por ser cláusula indeterminada com caráter imprevisível, abrindo uma ampla margem de discricionariedade no tocante à atuação policial. Defendeu, ainda, a não existiam elementos idôneos a atribuir razoabilidade à atitude suspeita enquanto base para a intervenção dos agentes.
Quando da decisão, a Corte Interamericana considerou que, não obstante as detenções terem sido realizadas pelos policiais num contexto preventivo, e não em sede de investigação criminal, elas se transformaram em prisões, devido às provas encontradas durante a busca pessoal, razão pela qual tais pressupostos poderiam ser analisados com base nos direitos à liberdade pessoal e à proteção da honra e da dignidade, direitos esses abarcados pela norma contida nos artigos 7 e 11 da Convenção.
No tocante ao direito à liberdade pessoal, a Corte alegou que, não obstante o dever estatal de garantir a segurança e a manutenção da ordem pública, seu exercício deveria ser limitado pelo direito e exercido em respeito aos direitos fundamentais de todos os indivíduos. Afirmou, ainda, que os fins a que se prestam a manutenção da segurança e ordem pública, exigem do Estado a adoção de medias de naturezas diversas, voltadas para a prevenção e regulação da conduta de seus cidadãos e, dentre essas medidas, foi elencado o dever de garantir a presença de forças policiais nos espaços públicos. Todavia, asseverou que eventuais vícios nesse processo de interação entre os agentes de segurança e a sociedade protegida, constitui uma das principais ameaças à liberdade que, quando violada, faz surgir o risco de violações a diversos outros direitos, como a integridade pessoal e até a vida.
Quando da decisão, a Corte considerou que era necessário o estabelecimento de normas que regulamentem de forma clara e objetiva os limites da atuação policial nos casos de detenção sem ordem judicial, evitando que a intuição ou outros elementos subjetivos que não podem ser verificados posteriormente, sejam os fatores de motivações das intervenções dessa natureza. Essa regulamentação mencionada pelo Tribunal deveria ser manifestada através de uma legislação que condicionasse o exercício das atribuições policiais restritivas da liberdade à existência de fatos ou informações reais, assaz e concretas, que possibilitasse ao observador objetivo inferir, com certo grau de razoabilidade, que a pessoa detida era provável autora de infração penal. Em suma, defendeu a criação de um marco probatório que servisse de pressuposto para a atuação policial em breves detenções e buscas.
Para a corte, era necessária a demonstração detalhada, de acordo com casa caso concreto, das condições de modo, tempo e lugar que levaram o agente à conclusão de estar diante de um comportamento suspeito ou evasivo, levando-o a supor que o sujeito, provavelmente, estava cometendo um crime, estava prestes a cometê-lo ou que intentava evadir-se diante do policiamento.
Referiu-se, ainda, a um processo de normalização de práticas de detenção por suspeita de criminalidade, sob a justificativa de estar se perseguindo fins preventivos, que foi, posteriormente, convalidado pelo Judiciário. Nesse contexto, mencionou um movimento policial de detenção para a produção de estatística, como método de resposta ostensiva às demandas de segurança de grupos restritos, chegando, em sua mais grave repercussão, à incriminação forjada de pessoas pertencentes a grupos sociais desfavorecidos, movimento que persistia pelo falho ou ausente controle judicial das detenções policiais.
Sobre a necessidade de adequação normativa, considerou-se que a futura regulamentação deveria indicar as circunstâncias objetivas que serviriam de pressuposto justificativo para uma detenção momentânea ou revista pessoal, ressaltando que essas circunstâncias deveriam ser previamente verificadas pelos agentes, ou seja, antes da intervenção restritiva. Reforçou-se, ainda, a necessidade de que tais dispositivos fossem interpretados restritivamente de que as medidas fossem excepcionalmente realizadas, sem mandado judicial, em situações emergenciais, nas quais restam inviáveis a obtenção da ordem; e que fosse imposto aos agentes o dever de registrar, exaustivamente, os motivos e circunstâncias que motivaram a imposição da medida.
O caso Fernández Prieto e Tumbeiro vs. Argentina se reveste de considerável relevância para o estudo da busca pessoal no âmbito das ações preventivas voltadas para a preservação da preservação da ordem pública, não somente pela relação com as normas internacionais de direitos humanos previstas nos instrumentos dos quais o Brasil é signatário, mas, também, em face da recomendação do Conselho Nacional de Justiça, acerca da utilização da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, (Recomendação nº. 123/2022), iniciativa que foi louvada no voto do Ministro Rogério Schietti, na relatoria do RHC nº 158.580/BA.
Nessa ação, a Corte Interamericana pontuou que a análise da busca pessoal deve considerá-la não apenas em seu aspecto processual, ou seja, enquanto instrumento voltado para o manejo probatório, mas a partir da sua natureza instrumental e concretizadora de direitos fundamentais, vez que repercute em direitos extremamente relevantes, tais como a privacidade, a integridade física, a honra e a liberdade pessoal em especial.
Diante disso, ressalta-se a importância de uma leitura do instituto a partir de seu caráter instrumental, voltado para a concretização dos direitos fundamentais. Não obstante afetar direitos individuais, tal como foi considerado pela Corte Internacional, trata-se de instrumento relacionado com outros bens jurídicos constitucionais fundamentais, dentre os quais, destaca-se a segurança pública, que apresenta, enquanto direito fundamental, natureza bidimensional, ou seja, tanto se manifesta como um direito individual de caráter negativo quanto se apresenta como um direito social, prestacional, que impõe aos Poderes Públicos medidas efetivas de garantia.
7. A SEGURANÇA PÚBLICA ENQUANDO DIRITO E GARANTIA FUNDAMENTAL
O Estado Brasileiro consiste em Estado Democrático de Direito, erigido sobre, dentre outros fundamentos, a Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana (CF/88, art. 1º, II e III). O Estado de Direito é caracterizado pela submissão do Poder Público à constituição e às leis e, quando revestido de um aspecto democrático e social, esse mesmo Estado não se contenta apenas com a observância das normas em seu aspecto formal, entretanto compromete-se com o ideário de justiça e concretização material dos direitos.
Quando do surgimento das primeiras constituições escritas, ao fim do séc. XVIII, vigorava a ideia de submissão do Estado soberano ao direito posto. Nesse período, privilegiava-se uma postura negativa por parte do Estado, que deveria interferir minimamente no âmbito das relações sociais, é o que se entende por Estado Liberal. Foi nesse período que surgiu o princípio da legalidade em sentido estrito, que permitia ao Estado agir apenas mediante autorização legal, diferentemente do princípio da legalidade em sentido amplo, voltado para a sociedade em geral, que permite ao indivíduo a prática de qualquer comportamento, desde que não seja proibido por lei. Aqui, estabelecem-se as liberdades individuais enquanto direitos fundamentais de primeira dimensão, pois surgem em um primeiro momento do constitucionalismo.
Entretanto, a experiência demonstrou que, sob a égide da lei, inúmeras injustiças sociais poderiam ser cometidas por um Estado que privilegia a aplicação do direito em sua acepção meramente formal, verificando-se, no plano fático, verdadeiro esgotamento da visão liberal. Ocorre que o absenteísmo estatal cooperou para o estabelecimento de um ambiente propício à acentuação da desigualdade social, vez que, no contexto do Estado de Direito, todos eram iguais perante a lei, independentemente da posição que cada um ocupava nas diversas relações sociais.
Diante desse contexto, inicia-se um clamor social pela atuação do Estado em prol do equilíbrio das relações, em especial no âmbito econômico. Surge então o Estado Social, com uma postura mais intervencionista, ocupando-se em garantir um “bem-estar social mínimo”. É nesse período que as constituições passam a estabelecer direitos fundamentais sociais (ou direitos de segunda dimensão), que exigem do Estado prestações – por isso são denominados de direitos prestacionais.
Ao passo que os direitos fundamentais de primeira dimensão são considerados direitos de defesa (ou negativos); os direitos de segunda dimensão apresentam-se como direitos positivos, que impõem ao Estado uma atuação voltada para a concretização da igualdade material. A mera igualdade formal cede lugar para a ideia de equidade.
À guisa de exemplo, no ordenamento pátrio atual, pode-se mencionar a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) em relação ao disposto no inciso I, do art. 5º, da CF/88, cuja norma ali contida informa que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos da Constituição. Quando do julgamento da ADC nº19, o STF decidiu por unanimidade que o fato de a referida lei ser voltada apenas para a proteção das mulheres não implica violação ao princípio da igualdade. Na ocasião, o Relator (Min. Marco Aurélio) apontou para o histórico de discriminação enfrentado pelas mulheres no âmbito afetivo, cujas agressões eram, conforme voto do Ministro, significativamente maiores do que as sofridas pelos homens em situação similar. Os direitos fundamentais correspondem às faculdades inerente à pessoa humana, declarados em uma Constituição. Contudo, a declaração desses direitos sem instrumentos jurídicos aptos a garanti-los, em face de omissões e violações, transformá-los-ia em meras proposições simbólicas. Isso posto, tem-se que a declaração de um direito corresponde a um dever, seja ele negativo, no sentido de impor a abstenção de comportamentos violadores; ou positivos, referentes às prestações necessárias à efetivação desses direitos.
Após a II Guerra Mundial, surge o então Estado Democrático de Direito, que abraça as conquistas experimentadas, todavia superando o paradigma da soberania da lei. A partir desse momento, busca-se conferir maior força normativa à Constituição.
Esse Estado Constitucional Democrático, agora, reconhece a titularidade do Poder do Estado enquanto pertencente ao povo. Assim, a vontade popular é, em tese, manifestada pelos representantes do povo que exercem a função legislativa.
Outra característica importante desse Estado Democrático de Direito, preferencialmente chamado pela doutrina de Estado Constitucional Democrático, é que a Constituição possui uma enorme carga axiológica, ou seja, ela é um valor em si. Dela emanam valores que, mais do que simplesmente estabelecem regras que devem ser observadas, informam e balizam toda a construção do direito, desde a sua criação no âmbito do Poder Legislativo, até sua aplicação e execução pelos demais poderes estatais. Logo, é imprescindível compreender que a Constituição, atualmente, não apenas limita a atuação do Estado, todavia busca a concretização dos direitos fundamentais. Eis a ideia central do neoconstitucionalismo.
Dentre tais valores, encontra-se aquele a quem a doutrina atribuiu o status de “superprincípio”, qual seja a Dignidade da Pessoa Humana. A dignidade da pessoa humana destaca-se dos demais fundamentos da República Federativa do Brasil, possuindo relevância nuclear no âmbito do constitucionalismo moderno.
Após a II Guerra Mundial, em face das nefastas atrocidades que foram cometidas naquele contexto, as constituições passaram a não apenas reconhecer a dignidade da pessoa humana, contudo conferi-la proteção. O reconhecimento constitucional da dignidade da pessoa humana é fundamental para que ela seja reconhecida como um valor jurídico dotado de normatividade, e não simplesmente um valor moral.
A dignidade não é um mero direito estabelecido pelo ordenamento, todavia é atributo inerente a todo e qualquer ser humano, ou seja, a dignidade é intrínseca à própria condição humana.
Ao estabelecer a Dignidade da Pessoa Humana enquanto fundamento, o constituinte impôs um dever de abstenção à atuação estatal, no tocante a qualquer atividade que venha a relativizar essa condição própria do ser humano. O ser humano é um fim em si mesmo, logo, qualquer ato que promova a objetificação da pessoa, configura violação à Dignidade da Pessoa Humana, e deve ser veementemente rechaçado.
Afirmar que o ser humano é um fim em si mesmo, é captar a ideia de que ele não pode ser utilizado ou tratado como um meio para alcançar um determinado fim. É o que, a título de exemplo, busca-se combater com o tratamento dispensado aos casos de tortura, em que a vítima, em última análise, é utilizada como um meio, sendo afligida em sua dignidade.
Todavia, a dignidade da pessoa humana não possui apenas uma dimensão negativa, ou seja, um dever de abstenção de condutas que objetifiquem o ser humano. A dignidade da pessoa humana impõe uma atuação positiva por parte do Poder Público, verdadeiro dever de proteção tanto por meio do Poder Legislativo, que deve atentar, por exemplo, para o princípio da proteção insuficiente, devendo elaborar mecanismos jurídicos eficazes na tutela da dignidade da pessoa humana; quanto um dever de promoção, que exige do Estado a adoção de medidas capazes de proporcionar à sociedade acesso a serviços e utilidades indispensáveis a uma vida digna. Dentre essas prestações, está inserida a segurança pública, que consiste em direito fundamental individual (direito de defesa) e social (direito prestacional).
A Segurança Pública, enquanto um direito fundamental individual, apresenta se como dever de abstenção de qualquer comportamento, tanto por parte do Estado quanto advindo de particulares, que viole ou ameace o bem-estar, o conforto, a confiança, entre outros aspectos que compõem a noção de um estado de segurança, de previsibilidade, no qual a pessoa possa se desenvolver em sociedade.
Por outro lado, enquanto um direito social, cujo caráter é prestacional, exige do Estado atuação no sentido de garantir ao ser humano esse ambiente seguro, seja por meio da elaboração de normas jurídicas que regulem as relações sociais, conferindo certa previsibilidade ao indivíduo; e até mesmo a atuação de órgãos que atuem preventiva e/ou repressivamente para garantir esse status de segurança.
Não obstante, a expressão “Segurança Pública” é comumente utilizada para se referir aos órgãos que compõem o sistema de segurança pública, cuja previsão constitucional encontra-se no art. 144 da CF/88.
Conforme disposto no aludido dispositivo, a segurança pública é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Essa preservação se dá através de ações preventivas e repressivas.
Ao mencionar a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio como objeto da atuação dos órgãos componentes do sistema de segurança pública, a Constituição insere comportamentos e situações que não necessariamente configuram infração penal, isso ocorre pelo fato de a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio também pode ser violada por condutas que não configuram crime. A norma contida no art. 144 da CF/88, por exemplo, aponta para órgãos incumbidos de zelar pela segurança viária, de atuar no âmbito da defesa social – Corpo de Bombeiros Militares, entre outros que não atuam estritamente e diretamente no combate à criminalidade.
Diversos diplomas legais mencionam a ordem pública, todavia merece destaque o Decreto nº 88.777/83 (R-200), que aprova o regulamento para as polícias militares e corpos de bombeiros militares, pois ocupou-se de definir a ordem pública, em seu art. 2º, item 21):
21) Ordem Pública – Conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum.
O R-200n no mesmo artigo, trouxe outras duas definições cuja leitura se faz interessante:
19) Manutenção da Ordem Pública – É o exercício dinâmico do poder
de polícia, no campo da segurança pública, manifestado por atuações predominantemente ostensivas, visando a prevenir, dissuadir, coibir ou reprimir eventos que violem a ordem pública;
25) Perturbação da Ordem – Abrange todos os tipos de ação, inclusive as decorrentes de calamidade pública que, por sua natureza, origem, amplitude e potencial possam vir a comprometer, na esfera estadual, o exercício dos poderes constituídos, o cumprimento das leis e a manutenção da ordem pública, ameaçando a população e propriedades públicas e privadas.
O Código de Processo Penal, no art. 312, ao tratar sobre a prisão preventiva, estabeleceu como um de seus fundamentos a garantia da ordem pública, compreendida pela jurisprudência como a exigência de demonstração do risco de reiteração delitiva.
Diante da complexidade que envolve a prestação da segurança pública, máxime em face de sua função de viabilizador do exercício de outros direitos fundamentais, tais como a saúde pública, a propriedade, a inviolabilidade da pessoa humana, da integridade, das liberdades, da vida, entre outros, uma compreensão do processo penal e da busca pessoal afastada dessa perspectiva de garantia pode conduzir a uma conclusão deficiente, com resultados danosos à sociedade.
Isso posto, ao confrontar a busca pessoal enquanto instrumento restritivo com o direito relativizado quando de sua imposição, qual seja a inviolabilidade pessoal e, ainda que momentaneamente, a liberdade pessoal; deve-se considerar qual valor deve preponderar no caso concreto.
8. A BUSCA PESSOAL E A PREPONDERÂNCIA DE INTERESSES
Os direitos fundamentais não são absolutos, haja vista a possibilidade de sofrerem limitações quando do enfrentamento de outros valores de ordem constitucional, até mesmo diante de outros direitos fundamentais (MENDES e BRANCO, 2023), trata-se do princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas.
Nesse sentido, preleciona Alexandre de Moraes (2023, p.110):
Os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias
individuais e coletivos consagrados no art. 5º da Constituição Federal,
não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da
prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento para
afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.
Conforme demonstrado, inúmeras ações foram frustradas, no âmbito do STJ, relativas a delitos que compõe uma rede de ilícitos que agrava cada vez mais o cenário da segurança pública no Brasil. O trancamento dessas ações penais, que foram deflagradas por meio do encontro de drogas, armas, entre outros objetos relacionados a práticas criminosas, contribuem para o estabelecimento de um ambiente de impunidade e agravamento de um contexto social de insegurança.
Analisar os pressupostos para a busca pessoal sem que haja um razoável sopesamento dos interesses fundamentais envolvidos, pode afetar gravemente a promoção de um direito fundamental que constitui garantia ao exercício de inúmeros outros direitos fundamentais. Contudo, essa consideração deve ser pautada no princípio da concordância prática ou harmonização, de modo a evitar o sacrifício total de direitos fundamentais em relação a outros, operando-se uma redução proporcional de seu âmbito de alcance, “em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua” (MORAES, 2023, p.111).
A busca pessoal é medida restritiva, que afeta direitos individuais, tais como a inviolabilidade pessoal, a intimidade, a honra, a liberdade pessoal, entre outros. Contudo, a imposição desarrazoada de limitações em homenagem a um conjunto de direitos individuais, pode promover efeitos muito mais danosos quando considerados seus efeitos em relação à coletividade, cujos interesses também envolve o conjunto de interesses individuais conjuntamente considerados.
A insegurança jurídica promovida pelo conjunto de decisões que apontam para a exigência de pressupostos objetivamente aferíveis, sem que se opere uma indicação coerente que permita ao agente que atua em prol da preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, acarreta uma série de efeitos danosos que, nem sempre, são imediatamente aferíveis, entretanto contribuem para o estabelecimento de um estado de violações inconstitucionais.
A título de exemplo, quando da apreciação do já mencionado HC: 638591/SP, a 6ª Turma do STJ considerou às exigências impostas para a realização da busca domiciliar a partir de denúncia anônima eram, mutatis mutandis, aplicáveis aos casos de busca pessoal no mesmo contexto.
Indaga-se, contudo, se não se trata de uma superproteção que ultrapassa a vontade do legislador constituinte e do infraconstitucional. A exigência de requisitos que apontem para um juízo de probabilidade quando da realização da busca pessoal, tais como instauração de procedimento prévio, uma percepção próxima da certeza visual do ilícito, parece contrariar a intenção legislativa, que diferencia a fundada suspeita das fundadas razões.
Conforme exposto, a inviolabilidade do domicílio desfruta de uma tutela robusta, que conta com, além de inúmeros dispositivos legais que se ocupam de, largamente, indicar o que se considera casa, estabelecer os horários em que, ainda que munidos de mandado judicial, a violação lícita poderá ocorrer, a tipificação de condutas que violem injusta e culpavelmente o domicílio; a delimitação constitucional explícita das hipóteses excepcionais em que a inviolabilidade domiciliar poderá ser relativizada.
Noutra via, o legislador exigiu, para a busca pessoal, que houvesse um juízo de fundada suspeita de que o indivíduo estivesse em porte de objetos ilícitos ou que constituísse prova de crime. A suspeita, por si só, refere-se a um juízo subjetivo, é a suposição que um indivíduo tem acerca de uma situação. Exigir que a busca pessoal seja realizada quando o agente suspeitar, desde que com base em fundamentos que permitam, a um terceiro observador objetivo, concluir que, naquelas circunstâncias, o homem mediano suspeitaria de que algo fugia da normalidade.
O Anteprojeto do Novo Código de Processo Penal menciona, tal como o Código vigente, a fundada suspeita enquanto pressuposto para a realização da busca pessoal sem mandado judicial. Entretanto, impõe que o executor da medida deverá informar os motivos da busca à pessoa a ser submetida à intervenção, que deverá ser registrada, juntamente com os dados do documento de identidade do revistado ou outro dado que permita a sua identificação. Além de estabelecer o procedimento mencionado, o anteprojeto, em seu texto, traz que “a busca pessoal será realizada com respeito à dignidade da pessoa revistada” (art. 266).
O que se pretende é demonstrar que a opção por uma expressão legal que confira uma margem de discricionariedade ao agente que executará a busca pessoal, não necessariamente apresenta uma “vagueza” (LOPES Jr., 2022) que fertiliza o campo da arbitrariedade e subjetivismo.
Todo o Ordenamento Jurídico deve ser interpretado à luz da Constituição, sob a perspectiva de concretização dos direitos fundamentais. Desse modo, a busca pessoal justificada por uma combinação de fatores de influência que parecem demonstrar que não se trata de uma análise completamente subjetiva e individual, mas que apresenta um padrão, tais como local de grande incidência criminal, determinados horários, atitude furtiva (correr, desviar o caminho etc.), informações de terceiros que optam por não manifestar sua identidade por temor de sofrer represália, entre outros; desde que revestida de proporcionalidade, respeitando-se a dignidade da pessoa humana, explicitação das razões em momento oportuno, demonstra-se mais como uma garantia que proporciona ao cidadão a sensação de segurança e vigilância, do que como uma intervenção tão somente violadora e sub-reptícia.
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As ações penais tramitadas no Superior Tribunal de Justiça que foram deflagradas a partir da busca pessoal, em sua grande maioria, desde o ano de 2019 até o período atual, restaram frustradas por serem consideradas inválidas por ausência de elementos objetivos e concretos que as justificassem. Ocorre que, como demonstrado, os elementos exigidos em um caso, por vezes era rechaçado em outro, permitindo concluir que não há um padrão de coerência acerca dos pressupostos para a busca pessoal e, diante disso, opta-se por privilegiar valores importantes, todavia individuais, que não desfrutaram da mesma atenção que outros direitos, quando da proteção conferida, não apenas pelo legislador infraconstitucional, mas pelo constituinte.
Percebeu-se que a denúncia anônima acerca da prática de um crime, somada a outros fatores, tais como identificação das características informadas, fuga quando da chegada do policiamento, e até mesmo o arremesso de objetos quando ao perceber a presença dos policiais, para a Corte, em alguns casos, não foram suficientes para legitimar a busca pessoal, cujos entendimentos manifestados nas decisões pareciam reiterar a exigência de instauração de procedimento prévio. Ess
cenário de incerteza, também, pode ser demonstrada quando mencionada a necessidade de realização de campana que, em determinada ação penal, compôs um rol exemplificativo de diligências elencadas na decisão judicial que poderiam ter enrobustecido a denúncia anônima e validado a diligência e, noutro momento, considerou-se que a denúncia anônima acompanhada de campana não justificou a medida, pois não houve indicação de instauração de procedimento prévio.
Quanto à percepção dos agentes policiais acerca da fundada suspeita, há de se mencionar que se trata de uma análise subjetiva, entretanto, que apresenta um núcleo de elementos comuns que podem ser aferidos por um observador objetivo em momento posterior, tais como indicadores criminais associados a uma localidade, padrões de práticas criminosas que podem ser coibidas com ações preventivas positivas, tais como a suspeita que paira sobre dois indivíduos em uma moto que, ao perceberem o policiamento, mudam de direção, o arremesso de objetos quando surpreendido por policiais, as denúncias anônimas seguidas de diligências, tais como campanas, observação e a própria averiguação em loco que, geralmente, consistem na própria abordagem e busca.
Saliente-se que é necessário que haja o aprimoramento dos mecanismos de controle, tais como a proposta constante no anteprojeto, que envolve o registro das informações pessoais da pessoa abordada, de modo a viabilizar a construção de um banco de dado que permitam a realização de melhores estudos sobre o tema.
Não obstante, é de se observar que a fundada suspeita, quando isoladamente considerada, pode demonstrar-se como um lastro probatório fraco. Porém, a análise da urgência da diligência diante das circunstâncias, de sua necessidade, bem como a execução de modo a minimizar o constrangimento que a busca representa, é fator preponderante de legitimação da ação, ainda que preventiva.
Diante disso, insta reconhecer que o tema é amplo e exige maiores reflexões, sobretudo no tocante à importância da medida enquanto instrumento de garantia da segurança pública. A colisão entre direitos fundamentais deve ser solucionada a partir de um juízo de preponderância de valores, que se realiza no caso concreto, e não a priori. Por essa razão, defende-se que não se pode impor limitações desproporcionais que frustrem a prestação estatal, sob pena de violação da proporcionalidade, que deve considerar uma relação de “custo-benefício” entre a restrição imposta e o bem jurídico privilegiado que, no caso em apreço, relaciona-se com a garantia do exercício de inúmeros outros direitos fundamentais que são essenciais ao convívio social harmônico.
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