VALOR DO INQUÉRITO POLICIAL E A ATUAÇÃO DO DELEGADO GARANTISTA

Cediço que a atuação policial, hodiernamente, detém grande destaque e, por vezes, é o nascedouro de grandes investigações, operações e ações penais, torna-se imprescindível avaliar qual o real valor do Inquérito dentro do processo penal até que este seja encerrado mediante o trânsito em julgado de uma sentença condenatória ou absolutória.

Trabalho de Conclusão de Curso de Pós-Graduação em Ciências Penais e Segurança Pública realizado pelo aluno Leonardo Belchior João no ano de 2022.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem a pretensão de apresentar uma ideia contemporânea a respeito do Inquérito Policial e seu valor no decorrer do processo penal que, possivelmente, terá início após a conclusão das investigações policiais. 

A importância de um Inquérito Policial bem elaborado, mediante decisões fundamentadas pelo Delegado de Polícia, o qual, por força da Lei 12.830/13, passou a ter, expressamente, uma função técnico-jurídica na análise do caso concreto, devendo, inclusive, fundamentar o ato de indiciamento ou, até mesmo, desindiciamento.

Ademais, irá tratar da atuação garantista do Delegado de Polícia, mediante visão bidimensional do Inquérito Policial, almejando não só fornecer elementos para que o Ministério Público possa elaborar a Denúncia, mas também fornecer elementos úteis à defesa dos direitos e garantias fundamentais do próprio investigado/acusado. 

Através deste artigo, busca-se renovar a visão que a sociedade tem acerca do que é o trabalho de investigação, buscando verdadeiro equilíbrio dentro do Inquérito Policial, que não está para o processo e seus atores apenas como instrumento de informações para a acusação, haja vista que as investigações devem ser imparciais e isentas de qualquer influência social e pessoal, com o intuito de tornar a verdade investigativa e processual a mais próxima possível da verdade material, auxiliando, inclusive, para evitar um Processo Penal desnecessário e leviano.

2. INQUÉRITO POLICIAL: CONCEITO CLÁSSICO X MODERNO

A investigação preliminar, costumeiramente vinculada apenas ao inquérito policial, encontra-se situada na fase pré-processual. Entretanto, cabe recordar que o inquérito policial não é o único instrumento para investigações preliminares, coexistindo com as Comissões Parlamentares de Inquérito, Procedimentos Investigatórios Criminais (PICs) do Ministério Público, Sindicâncias, dentre outras em nosso ordenamento jurídico. 

Muito embora em nosso sistema jurídico existam várias espécies de investigação preliminar, o inquérito policial se destaca por suas peculiaridades, desde suas características básicas, até o valor que lhe é conferido dentro da persecução penal (tema central deste artigo). Especialmente com relação a este último aspecto, há tempos em que se discute qual o real valor do inquérito policial, quão longe poderá ir dentro do processo a fim de que exerça influência na tomada de decisões além da opinio delicti do titular da ação penal.

Essa discussão deve-se muito ao próprio conceito clássico dado ao inquérito policial, o qual ainda predomina na doutrina. Assim, classicamente, denomina-se Inquérito Policial como um mero procedimento administrativo presidido pelo Delegado de Polícia (artigo 2º, §1º, da Lei 12.830/13), destinado a apurar a existência de um fato típico e sua autoria, coligindo informações suficientes para que o titular da Ação Penal possa decidir se inicia ou não o Processo Penal. Deste conceito ainda se destaca como sendo inquisitório e preparatório, pois nele não é obrigatório o contraditório e ampla defesa, bem como identifica fontes de prova a serem utilizadas na ação penal, respectivamente.

Contudo, a definição erigida e amplamente difundida na doutrina traz algumas limitações à atuação da Autoridade Policial. 

Assim, por este conceito clássico, qual a função do Delegado de Polícia no momento em que se depara com uma notitia criminis? Por qual razão dizer que o conceito clássico é capaz de limitar a análise da Autoridade Policial na conclusão das investigações?

As indagações ganham relevância quando exsurge situações em que o Delegado de Polícia poderia (ou não, a depender do conceito adotado) avaliar a possibilidade de aplicação do Princípio da Insignificância no caso concreto.

Ora, se o entendimento for de que o Inquérito Policial é um instrumento meramente informativo e preparatório, dispensável (ainda que a maioria das ações penais é precedida de um inquérito), sem valor probatório, há de se concluir que a análise técnico-jurídica da Autoridade Policial é simplesmente verificar a perfeita adequação do fato à norma, ou seja, apreciar tão somente a tipicidade formal do fato.

Apenas para recordar, o conceito analítico de crime é composto por Fato Típico, Antijurídico e Culpável, e cada elemento é um antecedente necessário para a avaliação do posterior. Assim, especificamente sobre o fato típico, tem-se como um de seus elementos a Tipicidade. Esta, por sua vez, subdivide-se em Tipicidade Formal (perfeita subsunção do fato à norma) e Tipicidade Material (lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido). Ao entender que o Delegado de Polícia deverá apenas verificar a subsunção do fato à norma penal incriminadora, transmite a ideia de que esta autoridade tem uma função meramente interpretativa do fato, pois apenas irá verificar se o investigado matou “alguém”, ou se lesionou a integridade física de outrem, como também se houve a subtração de “coisa alheia”. 

Veja que o conceito clássico, por si só, pode ser um limitador da atuação policial, pois esta, como já mencionado, deverá apenas informar ao titular da ação penal se o fato investigado se subsume a determinado tipo penal, jungindo informações necessárias acerca da dinâmica, circunstâncias, possíveis testemunhas e elementos que, posteriormente em contraditório judicial, serão qualificados como provas.

Por força desta condição, a autoridade policial não poderia ingressar na análise da tipicidade material, isto é, se o fato formalmente típico foi capaz de causar lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico protegido pela norma penal, de acordo com os requisitos traçados pelo Supremo Tribunal Federal, sendo Mínima Ofensividade da Conduta, Ausência de Periculosidade Social da Ação, Reduzido Grau de Reprovabilidade do Comportamento e Ínfima lesão ao bem jurídico.

Muitos dos adeptos ao conceito clássico entendem ser inviável, senão vedada, a análise pelo Delegado de Polícia acerca da tipicidade material de um fato concreto, isto é, se aquela conduta foi capaz de lesionar ou gerar um perigo de lesão ao bem jurídico inserido no âmbito de proteção daquela norma. Vale dizer, os adeptos dessa corrente (ainda majoritária, porém perdendo força) entendem que a Autoridade Policial não poderá aplicar o Princípio da Insignificância no caso concreto. 

Pode-se tirar como exemplo dessa corrente a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, no HC 154.949/MG, na qual a Corte se manifestou no sentido de que o Delegado de Polícia, sendo-lhe apresentada uma situação de flagrante delito, deve, no estrito cumprimento de dever legal, proceder à autuação em flagrante, vez que cabe apenas ao Judiciário, no caso concreto, a posteriori, apreciar a aplicação do princípio da bagatela. 

Ora, se a atuação da Autoridade Policial, seguindo o que dispõe a Lei 12.830/13, deve se pautar numa análise técnico-jurídica, por qual razão é vedado ao Delegado aplicar o Princípio da Insignificância? Torna-se contraditório dizer que este deverá tomar decisões jurídicas dentro do Inquérito, porém, ao apreciar os elementos probatórios coligidos nos Autos da investigação não pode aplicar mencionado princípio e deixar de indiciar um sujeito. O Delegado de Polícia não trabalha apenas com meras informações, senão com elementos de prova suficientes para embasar sua decisão jurídica.

Ainda, como explicar um impedimento ao Delegado de Polícia em decidir pela existência de uma causa excludente de ilicitude ou culpabilidade, mormente em situação de flagrante? Torna-se um verdadeiro contrassenso ao bom andamento da persecução penal um conceito de Inquérito que limita exageradamente a atuação técnico-jurídica do Delegado de Polícia. Cediço que a existência do crime não depende apenas da tipicidade (formal e material), mas da soma do fato típico, ilicitude e culpabilidade. Destarte, não faz sentido o encarceramento em flagrante de um sujeito que, muito embora tenha praticado um fato típico, o fez escorado numa causa justificante. Isso porque se um fato é amparado por uma excludente de ilicitude não há crime. Não havendo crime, não deve haver prisão.

Obviamente não se defende a aplicação infundada e desenfreada de causas justificantes nos casos em que o Delegado de Polícia deve analisar. Em verdade, este há de agir quando existirem elementos informativos e probatórios suficientes e robustos, capazes de trazer a certeza suficiente, neste prazo exíguo para lavrar o auto de prisão em flagrante, de que o agente atuou, v.g., em legítima defesa. Trata-se de uma situação em que sai imediatamente da condição de possibilidade para probabilidade.

Daí se faz a necessidade de uma nova visão do Inquérito Policial, reformulando o seu conceito e suas características, haja vista que a atividade policial exerce influência não só dentro do processo penal, haja vista que muitas decisões, mormente aquelas referentes à Busca e Apreensão, Interceptação Telefônica, são amparadas em elementos (probatórios) colhidos na fase de investigação, como também fora da persecução penal, isso porque afeta a vida, intimidade, privacidade de terceiros alheios ao agente criminoso, como também exerce influência na sociedade que tem na Polícia a esperança de diminuição da criminalidade e do sentimento de segurança social.

Henrique Hoffmann (2019, p.28) classifica o Inquérito Policial, sob um prisma mais Moderno como sendo: “processo administrativo presidido pelo delegado de polícia natural, apuratório, informativo e probatório, indispensável, preparatório e preservador.”

Veja que de um mero procedimento inquisitório e preparatório, cuja função é somente angariar elementos informativos para o titular da ação penal, passa a ser conceituado como verdadeiro Processo Administrativo sui generis. Isso porque, muito embora não existam partes propriamente ditas, nem mesmo uma verdadeira lide, é possível vislumbrar imputados em sentido amplo. Assim, conquanto não se vislumbre uma acusação formal nesta fase, existem fatos controvertidos que hão de ser dirimidos pelo Delegado de Polícia através de sua análise técnico-jurídica. À bem da verdade, estão em evidência durante a investigação direitos fundamentais do investigado e da vítima, como por exemplo a restrição da liberdade mediante prisão em flagrante, indiciamento, apreensão de bens. Frise-se que a partir do momento em que um Inquérito Policial é instaurado em desfavor de alguém, este sai de seu estado de absoluta inocência e passar a ter presunção relativa, pois também deverá demonstrar não ter praticado a infração penal.

Ainda diante deste conceito moderno, ao tratar o inquérito como apuratório ao invés de inquisitivo, vislumbra-se restabelecer o equilíbrio na sociedade que fora prejudicado pela conduta do próprio criminoso. Com isso, busca trazer à investigação uma vantagem a fim de que consiga apurar de forma satisfatória a prática criminosa através do sigilo inicial que abrange as investigações. Isso porque o investigado há de ser surpreendido com a prática de atos de investigação, sob pena de perda da eficácia da diligência. Ora, se o sujeito tiver prévio conhecimento de que é investigado, os elementos de prova a serem colhidos com a investigação serão destruídos. 

Vale ressaltar que o sigilo aqui erigido não é absoluto, pois não pode ser negado ao suspeito o acesso aos elementos já documentos nos autos do inquérito policial. Por tal razão, o termo inquisitivo vem sendo criticado como característica do Inquérito Policial, haja vista que nos remete aos abusos cometidos na Santa Inquisição, período em que o imputado era mero objeto, e não sujeito de direitos, como no sistema acusatório adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, não se pode tratar como inquisitivo, mas sim Apuratório, pois os atos de investigação não poderão causar lesão a direitos fundamentais do investigado, mormente no que diz respeito aos atos que dependem de ordem judicial para serem praticados (reserva de jurisdição), a exemplo da Busca domiciliar, Interceptação Telefônica. Ainda, a própria vítima deve ter seus direitos preservados, como imagem e sua dignidade, haja vista que não se pode forçar a vítima de um estupro, v.g., a participar de uma reprodução simulada.

Portanto, tratar o Inquérito como apuratório fornece mais segurança ao relacionar o sigilo do inquérito com a imparcialidade do delegado de polícia e a dignidade da pessoa humana dos investigados e das vítimas e seus familiares.

Ainda, importante dizer que o Inquérito também é probatório, além de informativo. Evidente que essa espécie de investigação preliminar produz elementos informativos, que se vinculam à conclusão das diligências policiais e serão apenas repetidos em sede judicial. Entretanto, o Inquérito Policial pode, eminentemente, produzir elementos de prova, sobre os quais o contraditório irá incidir, mesmo que postergado. O próprio Código de Processo Penal, em seu artigo 155 faz ressalva à possibilidade de apreciar elementos produzidos no bojo da investigação, como é o caso das provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

Note-se que durante a investigação policial, faz-se necessária a realização de várias diligências, a exemplo da Interceptação Telefônica. Esta, como prova cautelar que é, produzirá todos os seus elementos ainda em fase de investigação, quando seu início se der no Inquérito Policial. Neste ínterim, é correto dizer que não existe contraditório sobre os elementos probatórios coligidos através da interceptação telefônica? Por óbvio que está errado, pois o contraditório, muito embora ocorra em momento posterior, será garantido.

Seguindo a cautelar utilizada como modelo, um dos requisitos para que seja deferida pelo juiz a interceptação telefônica é que a prova não possa ser produzida por outros meios disponíveis, conforme artigo 2º, II, Lei 9.296/96. Ora, a própria Lei trata como “prova” os elementos colhidos na interceptação, haja vista que prevê a necessidade de que a “prova” não possa ser coligida por outros meios. Assim, de fato, os elementos produzidos durante a cautelar mencionada serão considerados provas para o processo, cujo contraditório será garantido posteriormente.

Neste mesmo sentido, Hoffmann (2019, p. 30), diz: “Esse contraditório postergado é extrínseco à produção da prova e ocorre após sua formação, o que significa que a prova foi efetivamente colhida no bojo do inquérito sob a presidência do delegado de polícia.”

Destarte, um vício existente durante as investigações preliminares no Inquérito Policial podem, de fato, gerar a nulidade das provas ali colhidas, sendo necessário seu desentranhamento dos autos a fim de que não influa em qualquer tomada de decisão. Ademais, por força desta clara característica probatória (ainda que relativa), tais vícios são capazes de prejudicar ulterior processo penal, cujos fundamentos tenham estrito vínculo com elementos probatórios angariados nesta cautelar. Lembrando que este é apenas um exemplo dentre vários no ordenamento. 

Outro fundamento para que se dê ao Inquérito a característica de probatório é retirada dos requisitos para que a Prisão Preventiva seja deferida. O Artigo 312 do Código de Processo Penal, após redação dada pela Lei 13.964/19, alcunhada como Pacote Anticrime, assim diz: “A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime…”. De conhecimento geral que a prisão preventiva poderá ser decretada tanto na fase de Inquérito Policial como durante a Instrução Penal. A previsão legal não faz ressalva de que a prova da materialidade deve ser somente por elementos produzidos em sede judicial, mas é mais amplo, abrangendo também a prova da existência do crime também em sede policial. Ou seja, é crível que a lei, mesmo que inconscientemente, deu força probatória, ainda que relativa, a determinados elementos produzidos no Inquérito Policial.

Apenas para reforçar o entendimento, se a lei diz que deve existir “prova da existência do crime” e a doutrina clássica diz que o Inquérito não tem valor probatório, é antagônica a decretação da Prisão Preventiva durante as investigações criminais conduzidas pela polícia, pois, como já mencionado, esta exige prova da materialidade. Destarte, não é saudável dizer, de modo absoluto, que o Inquérito Policial não possui nenhum valor probatório. Essa espécie de investigação preliminar tem elevada importância no decorrer do processo, pois inúmeras diligências são determinadas por força de elementos colhidos no Inquérito, em especial a Prisão Preventiva.

Há que se lembrar que o contraditório na fase inquisitorial não é obrigatório, entretanto, não é vedado. Vale dizer, é um elemento acidental do Inquérito Policial, haja vista que se não ocorrer, o inquérito permanece válido. Todavia, deve-se garantir ao investigado o direito de ter a presença de seu Advogado durante os atos para os quais for chamado.

Renato Brasileiro (2020, p. 189), muito embora tenha posição contrária ao conceito moderno de inquérito policial, traz com a clareza que lhe é peculiar, a dispensabilidade do contraditório na fase inquisitorial: 

“Cuida-se, a investigação preliminar, de mero procedimento de natureza administrativa, com caráter instrumental, e não de processo judicial ou administrativo. Dessa fase pré-processual não resulta a aplicação de uma sanção, destinando-se tão somente a fornecer elementos para que o titular da ação penal possa dar início ao processo penal. Logo, ante a impossibilidade de aplicação de uma sanção como resultado imediato das investigações criminais, como ocorre, por exemplo, em um processo administrativo disciplinar, não se pode exigir a observância do contraditório e da ampla defesa nesse momento inicial da persecução penal.”

Como é possível observar, o renomado Autor relata didaticamente que, apesar de não ter como consequência a aplicação de uma sanção, o contraditório seria dispensável. Ocorre que, como não tratar como uma sanção a privação de liberdade decorrente de uma prisão em flagrante? Ou, ainda, como não tratar como sanção a busca e apreensão decorrente de autorização judicial, por existirem indícios da prática de crime? 

Ainda que não se fale em obrigatoriedade do contraditório durante o Inquérito Policial, este deve ser oportunizado na maior medida possível, haja vista que inúmeras diligências investigativas têm poderes para invadir searas protegidas e qualificadas constitucionalmente como direitos fundamentais.

Neste ínterim, plenamente possível o direito de defesa do investigado no decorrer do inquérito, o que, possivelmente, daria força de prova aos elementos colhidos nesta fase pré-processual.

Seguindo com as características de um conceito moderno de inquérito policial, ao se falar de “indispensabilidade” traz à tona a ideia de garantir ao cidadão que não seja processado criminalmente sem que antes haja uma profunda, fundamentada e complexa investigação, a fim de que não seja dado início a um processo penal sem lastro probatório qualquer. Note-se que a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal destaca que o inquérito policial se revela como salvaguarda contra processos infundados e levianos, iniciados sem que, antes, fosse possível uma correta visão dos fatos como um todo. Nas palavras de Henrique Hoffmann (2019, p. 30), “A instrução preliminar é a ponte que liga a notitia criminis ao processo penal, retratando a transição do juízo de possibilidade para probabilidade pela via mais segura.”

Assim, muito embora a doutrina clássica trate o inquérito como dispensável, na prática essa não é a regra, pois na maioria esmagadora as ações penais em curso têm início através de um prévio inquérito policial. Portanto, o que seria visto como exceção (obrigatoriedade), em verdade, é a regra na prática forense. Com isso, pode-se dizer que o Inquérito Policial pode ser a própria Justa Causa para o exercício da Ação Penal, exigida pelo Código de Processo Penal em seu artigo 395, III.

Por fim, o atual conceito de inquérito policial o trata como sendo “preservador e preparatório”. Isso decorre do fato de que esta espécie de investigação preliminar tem o condão de esclarecer os fatos o mais próximo possível da verdade. Cediço que a verdade real é uma utopia, pois torna-se humanamente impossível alcançar a exatidão dos fatos em todas as suas circunstâncias. Entretanto, através das investigações policiais, cujos atos são formalizados no Inquérito policial, busca-se a maior proximidade com a realidade. Portanto, de suma importância que o inquérito forneça subsídios suficientes para o ajuizamento da ação penal ou o arquivamento da persecução penal. 

Neste diapasão, tem-se que o inquérito policial não é unidirecional, pois, como já mencionado, não é mero instrumento para servir de arma para a acusação. Ou seja, o Delegado de Polícia não é um agente que se vincula ao Ministério Público a fim de que lhe forneça elementos suficientes para oferecer a denúncia. Não há uma relação de meio e fim.

Em verdade, o Delegado de Polícia ao conduzir o Inquérito Policial, está a serviço da acusação, da vítima, do investigado e da própria sociedade, não apenas da parte acusadora, pois é órgão imparcial da persecução penal. Diante desta premissa, importante ressaltar que o Delegado deverá buscar informações e provas que sejam suficientes para proteger os direitos da vítima e do investigado, no afã de evitar a deflagração de um processo penal desnecessário e leviano.

Não somente isso, o Inquérito Policial mediante sua função “preservadora”, busca garantir a proteção de direitos fundamentais de vítimas e testemunhas, bem como do investigado. Isso porque, tudo o que for documentado no Inquérito poderá ser utilizado tanto para dar início à Ação Penal, como para requerer seu arquivamento e, até mesmo, para que sirva de base em âmbito cível para futura ação reparadora, haja vista que nem todo ilícito é um ilícito penal, podendo existir, de fato, elementos que constituam ilícitos civis que ensejam a obrigação de indenizar.

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3. FINALIDADE DO INQUÉRITO: VISÃO BIDIRECIONAL

Na doutrina processual penal brasileira difundiu-se a ideia de que a investigação criminal possui apenas uma visão, um foco, uma direção, qual seja, a de fornecer elementos para que a acusação possa exercer sua opinio delicti através do oferecimento da Denúncia. Dito de outro modo, a unidirecionalidade do inquérito policial nos faz concluir que a Autoridade Policial está a serviço do órgão acusador, a fim de que colha elementos suficientes para se alcançar a justa causa necessária par ao oferecimento da peça acusatória.

Se levarmos em consideração o conceito clássico de inquérito policial, que tem como característica ser “informativo”, essa espécie de investigação realmente teria como única função satisfazer o Estado-Acusação para que exerça sua pretensão punitiva. Assim sendo, poder-se-ia tratar a investigação como um simples instrumento à disposição do Ministério Público.

Há autor, por exemplo, José Frederico Marques (1997, p.154), que corrobora esta visão, pois para ele a investigação criminal “tem apenas valor informativo: prepara o oferecimento da acusação e fornece ao titular da ação penal elementos que o norteiem durante a fase instrutória do processo penal”, e conclui dizendo “como instrumento da ação penal, o inquérito é peça que interessa precipuamente ao órgão da acusação”.

Na mesma linha, o Ilustríssimo Promotor de Justiça Fernando Capez (2019, p 117) afirma que “A finalidade do inquérito policial é a apuração de fato que configure infração penal e a respectiva autoria para servir de base à ação penal ou às providências cautelares.”

Porém, nada mais equivocado do que esta conclusão, haja vista que o inquérito não está, como nunca esteve, a serviço apenas da acusação a fim de que esta possa exercer sua pretensão punitiva em desfavor do indiciado. Concluir dessa forma diminui o valor que a investigação preliminar possui para dar à ação penal elementos robustos acerca da materialidade e autoria e das circunstâncias do fato, como também impede que a Autoridade Policial possa ser o primeiro garantidor dos direitos fundamentais da vítima e daquele que está sendo investigado.

Num Estado Democrático de Direitos no qual vivemos hoje, dizer que a atuação policial visa apenas a proteção dos interesses da acusação torna-se um desserviço à função das Policias estampada no Artigo 144 da Constituição e seus parágrafos. O caput do Artigo mencionado diz que “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:”. Veja que o dispositivo da Constituição Federal não limita à proteção da incolumidade das vítimas, nem diz que está a serviço apenas da acusação. Todavia, deixa claro que compete às Policias Federal e Civil exercer as funções de Polícia Judiciária, ou seja, está à serviço da justiça e, esta, por sua vez, está para todos os cidadãos (vítimas e investigados), pois, a Carta Cidadã que rege o País garante a igualdade material e formal a todos.

Neste ínterim, a Autoridade Policial não está limitada a investigar apenas para colher elementos que sirvam à acusação.

Paulo Rangel, (2011, p. 96-97), seguindo a mesma doutrina acima, entende que o inquérito policial traz consigo a característica unidirecional, haja vista que tem como finalidade exclusiva apuração dos fatos que são investigados, sem que seja possível à autoridade policial emitir qualquer juízo de valor ao concluir o ato, citando como exemplo a impossibilidade de o Delegado de Polícia dizer se o indivíduo agiu movido por violenta emoção ao matar alguém.

Nada obstante, com o máximo respeito aos ínclitos autores citados, concluir desta forma é um equívoco. Isso porque a Autoridade Policial ao presidir uma investigação penal, está a serviço de todos, está a serviço da sociedade como primeiro garantidor de Direitos Fundamentais dos envolvidos numa suposta prática de um fato típico.

Neste diapasão, no contexto de nossa República Federativa do Brasil, cujo contexto é de um Estado Democrático de Direitos, no qual a Constituição Federal de 1988, preocupada com os abusos cometidos nos regimes anteriores, buscou proteger de forma eficaz os direitos fundamentais, mormente os de 1ª geração (direitos de liberdade, direitos individuais), há de se readequar a finalidade do inquérito policial para uma visão bidimencional. Frise-se que esta readequação para bidimencionalidade da investigação penal está consonância com o conceito moderno de inquérito policial, o qual tem como uma de suas características ser Preservador e Preparatório.

A Constituição Federal, ao tratar da Segurança Pública deixou claro, como já mencionado, que a Polícia Federal e a Polícia Civil têm a função de Polícia Judiciária, cada qual nos limites de suas atribuições. Ainda, deixa expresso que também atuará na “proteção de pessoas”, e não de algum ou alguns sujeitos, excluindo outros. Portanto, conclui-se que “pessoas” abrange tanto a vítima de uma infração penal como seu autor, possível investigado.

Com isso, busca-se dar ao Inquérito Policial uma visão bidirecional, isto é, que a Autoridade Policial apure os fatos de modo imparcial, compatibilizando a investigação criminal e a instrução processual ao sistema acusatório, respeitando-se princípios da ampla defesa e do contraditório, onde tais elementos colhidos na fase pré-processual sirva tanto à acusação quanto à defesa.

Alexandre Morais da Rosa (2017, p.416), diz que o inquérito policial tem como finalidade “produzir material probatório e informativo capaz de colher todos os pontos de vistas possíveis, a partir de regras democráticas, para o fim de justificar ou não a autoria, materialidade e culpabilidade, diante dos efeitos nefastos do processo de criminalização”.

Veja que o autor reforça a ideia de que na investigação há de se colher material probatório, abrangendo todas as circunstâncias que envolvem o fato concreto, isto é, a fim de atingir o nível máximo da proximidade com a verdade real, com o intuito de que todo o material que ali constar seja de uso para acusação e para defesa.

Neste mesma linha, André Nicolitt (2016, p.201), que, apesar de inicialmente adotar a visão unidirecional do inquérito, passou a entender que tem sim como característica a bidirecionalidade, dizendo 

“Pois como sustentamos o delegado de polícia ao lavrar o auto de prisão em flagrante, por exemplo, verificará a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade do agente. Seria um absurdo excluir tal apreciação, o que conduziria, por exemplo, o delegado não considerar a condição de adolescente e em relação a este lavrar APF, ou ainda, lavrar o APF diante de evidente atipicidade material por incidência da insignificância. Afirmar que o delegado de polícia não faz juízo de valor revela verdadeiro equívoco sistemático”.

Portanto, garantir ao Delegado de Polícia que atue amparado com certa independência, traz segurança às investigações policiais a fim de que sejam imparciais e isentos de qualquer influência institucional ou política no exercício de suas funções.

São precisos os ensinamentos do Delegado de Polícia de Minas Gerais, Cleyson Brene (2019, p.112), que ensina com a dinâmica que lhe é peculiar

“Aliás, como instrumento que deve servir tanto à acusação quanto à defesa, o procedimento persecutório se destaca no contexto do Estado Democrático de Direito, pois, diante do caráter bidirecional, imparcial, abrem-se caminhos, inclusive, para reconhecer a inocência de um investigado, a insuficiência de provas em desfavor de outro, a extinção da punibilidade, ou, ainda, pela inexistência do crime. Portanto, teses defensivas que se inserem no bojo de um inquérito policial voltado, efetivamente, para a apuração da verdade dos fatos”

Com base nesta bidirecionalidade do Inquérito Policial, podemos trabalhar a ideia de um “Inquérito Policial do Equilíbrio”, tal como existe a defesa de um “Direito Penal do Equilíbrio” erigida pelo eminente Secretário de Segurança Pública de Minas Gerais, Rogério Greco.

Nesta senda, quando se fala de uma investigação criminal bidirecional, há de se entender esta deve ter equilíbrio ao tratar dos fatos, no sentido de que não se faz somente o trabalho de jungir elementos para a acusação, como também coligindo dados para que a defesa consiga exercer seu mister em favor do investigado.

A partir do momento em que uma infração penal é cometida, surge um desequilíbrio na sociedade, pois esta se vê em perigo, além da vítima que está prejudicada. Portanto, para que seja restabelecida a neutralidade, isto é, o equilíbrio social prejudicado pelo crime, inicia-se a persecução penal através das investigações policiais. 

Ocorre que, para que esta condição seja novamente nivelada, a Autoridade Policial não pode buscar defender um direito fundamental ferindo outro direito fundamental. Vale dizer, não é porque o criminoso invadiu a propriedade da vítima para subtrair-lhe os bens mediante grave ameaça ou violência, que o Delegado de Polícia está no direito de privar a liberdade, imiscuir-se na intimidade e privacidade, ou invadir o domicílio do suspeito sem respeitar as disposições constitucionais e legais que legitimem o ato.

O Delegado de Polícia, em verdade, está na função de reequilibrar a sociedade prejudicada pela prática de um crime, sem que seja necessária a prática de outro crime pela própria autoridade. Esta tem como função preservar os direitos fundamentais dos envolvidos na infração penal, vítima e investigado. Isso porque, nem todo investigado é, de fato, um culpado, como também nem toda vítima é tão vítima como diz ser, e, com isso, o Inquérito Policial do Equilíbrio irá trazer à tona as nuances necessárias para esclarecer o que de fato ocorreu ao redor do delito.

O corpo social, punitivista por natureza, ao se deparar com a informação de um crime deseja prontamente que o sujeito suspeito seja punido. Não são raras as vezes que vemos linchamentos sendo praticados por moradores contra aqueles que são acusados de crimes, em especial, crimes sexuais. 

Ao contrário, o Delegado de Polícia deve estar isento de qualquer pretensão punitivista, devendo trazer para si a responsabilidade de dar à sociedade a sensação de segurança, pois atua em defesa de direitos fundamentais mediante investigação isenta de qualquer influência.

Assim, para que se tenha uma investigação criminal justa, que proteja os direitos fundamentais dos envolvidos, faz-se necessária a presença de uma Autoridade Policial imparcial. 

Cleyson Brene (2019, p.112), citando Juan Montero Aroca, bem diz 

“a imparcialidade não é o princípio inerente apenas à função jurisdicional, mas também à função executiva, com a peculiaridade de que o administrador deve exercer sua vontade de forma impessoal, ou seja, não pode favorecer algum administrado com prejuízo de outros. A Administração Pública atua com objetividade, mas desinteressada subjetivamente. Seu interesse é de todos da comunidade”.

Portanto, o que se busca com o distanciamento desta finalidade unidirecional do inquérito policial é que se tenha uma investigação isenta de influências e imparcial na apuração dos fatos e, através disto, trazer a maior quantidade possível (e qualidade) de informações acerca do acontecimento delituoso, auxiliando na comprovação da existência ou não do crime, bem como se a autoria pode ser imputada ao suspeito ou não.

4. ATUAÇÃO PROPORCIONAL DO DELEGADO GARANTISTA

O Direito Penal está intrinsecamente ligado às demandas sociais, o que se deve muito à contextualização desse ramo do Direito à realidade que cada comunidade ou período histórico representa. Isto é, há 50 anos não se cogitava a possibilidade de furtos por meios digitais, entretanto, com o desenvolvimento da tecnologia e sua expansão em todos os aspectos do convívio social, a inteligência humana foi capaz de criar mecanismos para que a os meios tecnológicos fossem utilizados para a prática de ilícitos penais. Por isso, por exemplo, viu-se a necessidade da criação de um tipo penal específico, previsto no Artigo 155, §4º-B, do Código Penal.

 Entretanto, da mesma forma que o Direito Penal é utilizado como meio para proteção de bens jurídicos essenciais para a sociedade, também pode ser meio de movimentos políticos, a fim de que, através da criação de tipos penais, as pessoas tenham a sensação de que estão mais protegidas.

Em tempos de Direito Penal Simbólico, a inflação da legislação penal torna-se meio de movimentos políticos e ideológicos capazes de influir no sentimento do corpo social, fazendo com que este veja o Direito Penal como sendo a solução para a diminuição da criminalidade, erguendo-o de ultima ratio para prima ratio.

Há muito que este ramo do Direito é regido pelo Princípio da Intervenção Mínima, cujos desdobramentos são os Princípios da Fragmentariedade e Subsidiariedade, devido ao fato de sua força coercitiva contra aquele que acusado da prática de um ilícito. Assim, havendo a possibilidade de o conflito ser solucionado por outros ramos do Direito, por qual razão criar um novo crime tipificando aquela conduta? Um grande exemplo é a criação do tipo penal de “Violação de Cetáceo”, cujo móvel foi a conduta de um sujeito que introduziu um canudo no orifício de um golfinho que, posteriormente, morreu. Ora, havia mesmo a necessidade de criação de um tipo penal em razão desta conduta? Se seguirmos a definição de crime feita pela Criminologia como sendo um fenômeno social, não temos a presença, neste caso da Incidência Massiva na População, Incidência Aflitiva, Persistência espaço-temporal e nem Consenso sobre sua etiologia. Assim, é nítida a criação de um tipo penal desnecessário.

Ainda, no lamentável caso em que uma passageira de um transporte coletivo sofreu com violação sexual no momento em que outro sujeito masturbou e ejaculou sobre ela, prontamente o Poder Legislativa se movimento para trasladar a Contravenção Penal de Importunação Sexual para crime de Importunação Sexual, previsto no Artigo 215-A do Código Penal, cuja pena é de reclusão de 1 a 5 anos. Veja que, a proteção é apenas aparente, haja vista que, embora seja crime, ao mesmo é permitida a aplicação da Suspensão Condicional do Processo, em razão da pena mínima desde que sejam cumpridos os demais requisitos. Portanto, qual a real proteção para as vítimas? Torna-se, na verdade, aparente.

Assim, o Delegado de Polícia agindo como primeiro garantidor dos Direitos Fundamentais da vítima e também do suspeito, tem sua atuação garantista prejudicada, pois o anseio social por punição como subterfúgio para um sentimento de segurança faz com que a autoridade policial possa ser influenciada pelo mesmo desejo.

Em razão desse sentimento de impunidade, de insegurança que predomina o meio social, vários mecanismos punitivistas ganham força, a exemplo dos Movimentos Lei e Ordem e Direito Penal do Inimigo. 

Neste aspecto, o Delegado de Polícia, deve ser isento de influências sociais, políticas e ideológica, a fim de que exerça seu mister com a excelência que lhe é exigida, dispensando nas investigações todo o seu anseio em entregar uma investigação perfeita, protegendo o cidadão, porventura, infrator de excessos, como também fornecendo à vítima uma proteção eficiente.

Daí se relacionam o Garantismo e a dupla face do Princípio da Proporcionalidade.

Henrique Hoffmann (2021, p.322), citando Rogério Greco, explicando os ideais do garantismo, assim ensina

“Desse modo, defende que o Estado, ao exercer o jus puniendi, reconheça que o criminoso é sujeito de direitos. Há dimensões de garantias com a finalidade de resguardar os direitos do agente:

a)garantias primárias: que são os limites normativos impostos pela lei, que tutelam o direito e vedam o excesso do exercício do poder (exemplo: conjunto de regras atinentes ao princípio da anterioridade, ou ao princípio do ne bis in idem);

b)garantias secundárias: preveem formas de reparação no caso de violação das garantias primárias (exemplo: possibilidade de anulação de atos inválidos);”.

Entretanto, o garantismo de Ferrajoli tornou-se distorcido dentro de nosso ordenamento jurídico, haja vista que constantemente se vislumbra nas decisões judiciais um garantismo voltado apenas para proteger o infrator do Estado, haja vista que há aplicação excessiva de proteção aos direitos fundamentais do infrator em detrimento da vítima.

Equivoca-se aquele que entende ser o Garantismo um meio de proteção apenas para o infrator. Vislumbra-se na doutrina mais apurada que esse movimento se desdobrou em duas faces, garantismo negativo, que proíbe todo e qualquer excesso estatal na condução das investigações e processo penal, como também na execução da pena, e prima pelos direitos do criminoso. Por outro lado, há o garantismo positivo, o qual veda a proteção deficiente ou insuficiente do Estado e da coletividade. Daí surge o que se denomina de Garantismo Integral, como também vincula-se às duas faces da Proporcionalidade.

Em primeira análise do fato típico, o Delegado de Polícia exerce papel fundamental na proteção do Garantismo Integral, fornecendo àqueles que estão envolvidos no caso concreto a devida proteção e atuação do Estado.

Esta é a verdadeira leitura do Garantismo, opondo-se àquilo que se chama de garantismo hiperbólico monocular, garantismo à brasileira ou hipergarantismo, conforme descreve Douglas Fischer (2013, p29-53)

“Louvamos e defendemos abertamente a proteção dos direitos fundamentais individuais, mas a ordem jurídico-constitucional prevê outros direitos (não se olvide dos coletivos e sociais), também deveres (que são pouco considerados doutrinária e jurisprudencialmente no Brasil), e está calcada em inúmeros princípios e valores que não podem ser esquecidos ou relegados se a pretensão é efetivamente fazer uma compreensão sistêmica e integral dos comandos da Carta Maior. (…)

A tese central do garantismo está em que sejam observados rigidamente não só os direitos fundamentais (individuais e também coletivos), mas também os deveres fundamentais (do Estado e dos cidadãos), previstos na Constituição. (…)

Se tem difundido um garantismo penal unicamente monocular e hiperbólico: evidencia-se desproporcionalmente (hiperbólico) e de forma isolada (monocular) a necessidade de proteção apenas dos direitos fundamentais individuais dos cidadãos que se vêem investigados, processados ou condenados. (…)

Também como imperativo constitucional (art. 144, caput, CF), o dever de garantir segurança (que se desdobra em direitos subjetivos individuais e coletivos) não está em apenas evitar condutas criminosas que atinjam direitos fundamentais de terceiros, mas também na decida apuração (com respeito aos direitos dos investigados ou processados) do ato ilícito e, em sendo o caso, da punição do responsável.”

O Supremo Tribunal Federal, no HC 104.410, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, publicado no DJ 27/03/2012, reforçou a ideia de que a persecução penal não deve apenas visar aos interesses do investigado ou réu, mas também há de proteger os interesses da vítima e da sociedade como  todo, haja vista que o Princípio da Proporcionalidade é dividido em proibição de excesso e vedação de proteção deficiente. 

Com isso, o Delegado de Polícia garantista deverá conduzir as investigações no afã de solucionar o caso concreto com eficácia. Entretanto, não se pode concluir que uma investigação eficaz é somente aquela capaz de levar um sujeito a ser condenado numa futura ação penal.

Em verdade, a plena eficácia de uma investigação está também atrelada à proteção dos direitos do próprio investigado, pois a demasiada exposição deste para a mídia, para a sociedade, para a vítima, causará prejuízos incalculáveis se, em momento futuro, vier a ser absolvido.

Destarte, há de se concluir que uma investigação eficaz é aquela que traz à luz fatos que se aproximem ao máximo da verdade real, mesmo sabendo que esta é uma utopia. Ao serem erigidos à luz os fatos como são, a investigação criminal é capaz de evitar que um processo injusto, leviano e ineficaz seja instaurado, permitindo ao Ministério Público uma análise clara de todo o contexto.

Entretanto, muito embora exista no Supremo Tribunal Federal a supracitada decisão, a atuação garantista de um Delegado de Polícia ainda não é bem vista no cotidiano. A sociedade, por vezes, tem maus olhos ao Delegado que deixa de indiciar um sujeito investigado por crimes violentos, por exemplo. Ora, se esta autoridade está a serviço do Estado e da sociedade como primeiro garantidor de Direitos Fundamentais, por qual razão forçá-lo a indiciar um sujeito sem elementos suficientes para tanto? O anseio social-pessoal jamais deve se sobrepor aos direitos individuais e coletivos constitucionalmente garantidos. 

Cleyson Brene (2019, p. 124-127), com a didática que lhe é peculiar, ensina

“Diante do panorama apresentado, se destaca o estranhamento doutrinário diante de uma atuação garantista da autoridade policial. O Processo Penal é guiado pelas balizas estabelecidas na Constituição Federal, que prevê um extenso rol de direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, a persecução criminal (incluída a persecutio criminis extra iudicio) deve ser conduzida com a observância de tais garantias, de forma integral e com a atenção para as diversas funções do processo. (…)

Diante da proposta do garantismo principiológico, à luz da Crítica Hermenêutica do Direito, o investigado não pode continuar a receber o tratamento de objeto do procedimento preliminar, pois, restaria o delegado de polícia atrelado à filosofia da consciência, como senhor dos sentidos que assujeita o objeto e aprisiona o conhecimento. A partir da hermenêutica filosófica, a relação é de intersubjetividade, figurando o investigado como sujeito de direitos.”

Seguindo esta linha de uma atuação garantista do Delegado de Polícia na condução das investigações, é de ser concebida a ideia de que a ele é permitido o Controle de Convencionalidade da norma.

Muito embora seja um assunto recente, o Controle de Convencionalidade é o exercício de verificação da adequação da legislação ordinária com os tratados internacionais, mormente de Direitos Humanos.

A Autoridade Policial, pela própria natureza e relevância de suas atribuições, deve dominar o ordenamento jurídico nacional, como também internacional. Assim, tanto as normas constitucionais (incluindo os tratados internacionais de direitos humanos aprovados com quórum de emenda constitucional) devem ser de pleno conhecimento do Delegado de Polícia, como também as normas infraconstitucionais, supralegais (tratados internacionais de direitos humanos aprovados com quórum simples) e legais.

Este Controle de Convencionalidade não pode ser exercido sem qualquer padrão, haja vista que ao ser realizado deve-se obedecer à interpretação elaborada pelo controle internacional. Assim, o Controle de Convencionalidade Nacional (exercido por órgão interno), deve guardar correspondência com o exercido por órgão internacional.

Cediço que não é qualquer órgão dotado de condições necessárias para realizar o controle, mas somente aqueles cujas atividades sejam capazes de atingir o núcleo mais íntimo dos direitos protegidos por nossa Constituição. Neste aspecto, Henrique Hoffmann (2019, p.56) leciona

O delegado de polícia é, na dicção da Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 7.5), outra autoridade autorizada por lei a exercer função judicial, tendo a atribuição de analisar juridicamente os fatos ocorridos aplicando a lei ao caso concreto, ainda que em juízo de cognição sumária. Fácil perceber que a Polícia Judiciária tem a importante missão de assegurar que as investigações criminais se mantenham em sintonia com um país democrático, projetando-se o delegado de polícia como a primeira autoridade estatal a preservar os direitos fundamentais de todos os envolvidos.

Fácil concluir que o Delegado de Polícia relativiza a todo momento direitos fundamentais diretamente, como liberdade e intimidade. Vale dizer, as decisões jurídicas tomadas pela Autoridade refletem nos bens jurídicos mais valiosos aos cidadãos, afetando as circunstâncias do indivíduo e com isso o próprio eu.

Evidente que a Autoridade de Polícia Judiciária não tem poderes para extirpar do ordenamento a norma jurídica que, ao seu sentir, é inconvencional. À bem da verdade, deixará de aplicar a norma no caso concreto, fazendo outra norma (esta convencional) incidir naquela situação, ao fundamentar sua decisão a fim de preservar os direitos fundamentais dos envolvidos. Com isso, afasta-se a incidência de uma norma jurídica com menor garantia ao cidadão para que, assim, seja aplicada a norma de maior proteção, em homenagem ao princípio do pro homine.

Há de se lembrar que, em havendo o exercício desta espécie de controle pelo Delegado de Polícia, sua decisão não será definitiva, haja vista que, posteriormente, será objeto de controle tanto pelo Ministério Público como pelo Judiciário. 

É nítido que ocorrendo lesão às disposições constitucionais, tratados internacionais de direitos humanos e suas interpretações, o Delegado de Polícia tem o dever de evitar a aplicação dessas normas, buscando, em análise jurídica, a incidência daquelas que sejam de maior proteção.

Hoffmann (2019, p.58) continua

“Nenhuma perplexidade causa essa constatação. Diuturnamente o delegado de polícia faz análises técnico-jurídicas (art. 2º, §6 da Lei 12.830/13) nesse viés, como por exemplo ao negar a incomunicabilidade do investigado. Apesar de autorizada pelo art. 21 do CPP, a não comunicabilidade do preso viola a Constituição, que veda a incomunicabilidade mesmo em Estado de Defesa (art. 136, §3º, IV), e assegura a comunicação ao juiz, à família ou à pessoa indicada (art. 5º, LXII), bem como a assistência da família e de advogado (art. 5º, LXIII)”.

Seguindo a mesma linha, mencionando as decisões tomadas pelos Tribunais Superiores a respeito do crime de Desacato, Cleyson Brene (2019, p. 184) conclui

Destarte, a partir do panorama esboçado, é possível falar-se no controle de convencionalidade realizado pelo delegado de polícia, afastando, sim, a aplicação do tipo penal do desacato, considerando a eficácia normativa e paralisante dos tratados internacionais, sem prejuízo da incidência de outras normas penais (…)

Na perspectiva da presente investigação, a decisão da autoridade policial possui natureza precária, não exauriente, no bojo da apresentada reserva de jurisdição. Por essa razão, a decisão deverá ser submetida, obrigatoriamente, ao crivo do Poder Judiciário, a quem cabe a última palavra, bem como do representante do Ministério Público, titular da ação penal.

Dentro deste panorama apresentado, plenamente possível vislumbrar que o Delegado de Polícia exerce papel fundamental na persecução penal, podendo-se dizer que este, muito embora não esteja previsto, exerce função essencial à justiça. Muito disso decorre do fato de que as investigações dependem de pleno conhecimento jurídico que deverá ser dispensado na conclusão das investigações, após todas as diligências necessárias para se chegar àquele resultado. 

Nesse jaez, a Autoridade de Polícia Judiciária deverá agir em plena sintonia com o Princípio da Proporcionalidade, a fim de que coíba qualquer excesso em desfavor do investigado, da mesma forma que deve evitar proteger com deficiência a vítima de um possível delito. 

Ademais, cumprindo com o que a proporcionalidade demanda, o Delegado de Polícia terá importante papel como agente Garantista, em seu aspecto integral e não monocular, pois vislumbra um campo amplo de direitos a serem protegidos, não sendo apenas um objeto de uso da máquina estatal punitivista que, no afã de dar à sociedade uma resposta rápida e, por vezes, ilusória, acaba por ceifar direitos e garantias fundamentais daqueles envolvidos na persecução penal.

5. CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto no presente trabalho, vemos que o Delegado de Polícia não é mero objeto descartável dentro da persecução penal, haja vista exercer, muito embora não positivado na Constituição Federal em capítulo próprio, função essencial à Justiça.

Em seu nascedouro, é certo que o Inquérito Policial poderia ser visto como um procedimento inquisitivo, onde havia constantes violações de direitos fundamentais daqueles que eram investigados. Não só por um conceito acadêmico, mas também porque naquele tempo o investigado era visto como um objeto da persecução penal, ente desprovido de qualquer direito, cujo trabalho investigativo tinha como foco pura e tão somente a colheita de elementos que fossem favoráveis à acusação.

Como bem detalhado, o conceito clássico de Inquérito Policial, ainda que indiretamente, acarreta limitação à atividade policial, que está para o processo como peça de elevada importância. Não se pode conceber a ideia de que o Inquérito Policial possui meros elementos informativos descartáveis pela acusação e que, de modo algum servirão para a defesa.

O conceito clássico de Inquérito Policial representa, em verdade, um visão distorcida do trabalho investigativo elaborado pela Polícia Judiciária. Ora, fica nítido que não há uma “Polícia da Acusação”, cuja função é apenas servir ao órgão Ministerial. À bem da verdade, a Polícia Judiciária está a serviço da Justiça e esta, por sua vez, está a serviço da sociedade, onde se incluem vítima e investigado.

Dizer que a Polícia Judiciária, através do Delegado de Polícia, no exercício de seu mister é incapaz de trazer elementos probatórios para o Processo, traduz um verdadeiro retrocesso a uma atividade que se expõe constantemente a riscos para que a verdade “quase real” seja entregue nas mãos do Ministério Público e do Judiciário.

Por estes motivos, rever o conceito de Inquérito Policial no afã de dar o real valor a essa espécie de investigação criminal não é mero capricho dos integrantes da carreira, mas verdadeira necessidade prática, pois a vaidade jamais deve se sobrepor à Justiça.

Torna-se cada dia mais evidente que o Inquérito Policial é indispensável para o início da persecução penal, pois é o procedimento mais complexo num campo composto por várias espécies de investigação criminal. As diligências conduzidas pela Autoridade Policial são capazes de dar ao Estado-Juiz todos os elementos probatórios necessários para condenar ou absolver um sujeito acusado de determinado crime. Da mesma forma que, a análise técnico-jurídica realizada pelo Delegado de Polícia sobre o caso concreto dá condição suficiente para que este deixe de indiciar alguém ou, até mesmo, que se dê início a uma persecução penal temerária.

Destarte, todo o trabalho investigativo realizado pelo Delegado de Polícia na presidência do Inquérito Policial, tem o condão de produzir provas (interceptação telefônica, busca e apreensão) capazes de influir na tomada de decisões pelo Juiz e também na opinião do Ministério Público como titular da Ação Penal.

Por isso, um conceito moderno, mais abrangente e completo, realçando as verdadeiras nuances do Inquérito Policial torna-se imprescindível dentro de um Estado Democrático de Direitos como o nosso.

Por este conceito, o Delegado de Polícia tem vital importância na proteção dos Direitos Fundamentais de todos os envolvidos na investigação, tanto vítima como investigado. Ora, indiciar um sujeito já acarreta tremendo dano à sua imagem e, ainda, é capaz de impedir o exercício de outros direitos, haja vista que o indiciamento inviabiliza a aquisição de arma de fogo e permite o seqüestro de bens previsto no Decreto-Lei 3.240/41. Não somente isso, o indiciamento estigmatiza o cidadão, tanto quanto um processo.

Desta forma, a Autoridade Policial, sendo-lhe possível, deve deixar de indiciar o sujeito quando lhe faltarem condições para tanto a fim de evitar todo o movimento da máquina judiciária e, ao seu cabo, concluir pela sua inocência. Nítido o tamanho do prejuízo que um simples ato pode causar na vida de outrem.

Portanto, em tempos de uma sociedade punitivista e cega à proteção de direitos fundamentais de todos os atores da persecução penal, a figura de um Delegado de Polícia Garantista ganha especial relevo, pois este, poderá ser seu protagonista ao proteger os direitos constitucionalmente garantidos a todos os cidadãos.

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REFERÊNCIAS

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BRENE, Cleyson. Ativistmo Policial O papel garantista do delegado de polícia. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.

CAPEZ, Ferando. Curso de Processo Penal. 26ª ed. São Paulo: Editora Saraiva Jur. 2019.

FISCHER, Douglas. O que é garantismo integral (integral)? In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo. Garantismo penal integral. Salvador: editora JusPodivm, 2013.

HOFFMAN, Henrique; FONTES, Eduardo. Temas Avançados de Polícia Judiciária. 3ª edição, revista, atualizada e ampliada. Salvador: editora JusPodivm, 2019.

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MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal – Vol. 1. 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1997.

NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 6ª edição. Re., atual. e amp. São Paulo: Editoria revista dos Tribunais. 2016.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18ª edição, revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 4ª edição, revista, atualizada e ampliada. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

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